Cem Anos da História da Cardiologia no Brasil 

Continuação

 

Com um artigo de revisão de Sérgio Giannini sobre "Fatores de Risco Coronariano", iniciava-se a era da prevenção da cardiopatia coronária no Brasil, tomando-se conhecimento, pela primeira vez, da possibilidade de evitar a aterosclerose. Firmava-se o conceito de que estávamos lidando com uma doença multifatorial na qual o aumento do colesterol, a hipertensão e o tabagismo eram os principais fatores causais. O grau de credibilidade desses fatores como risco de aterosclerose tem sido lento, porém progressivo, pois hábitos arraigados são difíceis de remover. Esta não é uma campanha para 10 anos, mas para décadas; cabe aos médicos convencer a sociedade a entrar em uma luta que vale a pena pelos excelentes frutos que ela trará.

Em 1974, iniciávamos a ecocardiografia, pelas mãos de Egas Armelin, que trouxe o primeiro ecocardiógrafo para o País, instalando-o no Hospital da Beneficência Portuguesa, em São Paulo. Em 1975, outro pólo ecocardiográfico passou a existir no Hospital do IASERJ, iniciado por Fernando Morcerf e Rubens Thevenard, no Rio de Janeiro, servindo-se do ecocardiógrafo do Curso de Pós-Graduação em Cardiologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Para se ter uma idéia de como ele se tornou rapidamente popular, basta lembrar que, 10 anos depois, já existiam, no Brasil, 320 ecocardiografistas, um sinal claro e evidente do seu progresso constante e rápido, impulsionado pelo entusiasmo desses médicos. Em 1978, já eram usados aparelhos capazes de realizar exames em duas dimensões, aumentando a capacidade do método. Importantes líderes nesta fase inicial foram Jonas Talberg e Jorge Moll, no Rio de Janeiro; Juarez Ortiz e Alfonso Barbato, em São Paulo; Fernando Santos, em Belo Horizonte; Iran Castro, em Porto Alegre; e Paulo Brindeiro, no Recife. A princípio, o ecocardiograma diagnosticava lesões valvares e doenças do pericárdio, porém, na evolução para o bidimensional e com a adição do doppler e do mapeamento em cores, passou-se a diagnosticar, com precisão, o estado funcional do coração, principalmente da contração segmentar, o fluxo sangüíneo, o tipo de disfunção ventricular, as dimensões do ventrículo esquerdo e a espessura de suas paredes, a possibilidade de estimar pressões de cavidades e vasos, de medir a área das valvas mitral e aórtica, de descobrir vegetações e de identificar, com exatidão, defeitos congênitos nas crianças. Ultimamente, outras técnicas têm se agregado a este método, tais como o eco transesofagiano, o eco de estresse, o eco tridimensional, o estudo da perfusão por bolhas, o ecocardiograma intracoronário e o ultra-som digital, que permitiram melhorar a imagem e avaliar os ecos pelas técnicas mais sofisticadas do computador. Foi tão marcante a posição do ecocardiograma no diagnóstico, avaliação e prognóstico das doenças do coração e dos vasos, que ele se tornou indispensável em Cardiologia, diminuindo, de modo acentuado, o número de estudos hemodinâmicos e de medicina nuclear aplicados à Cardiologia.

Em 1975, Adib Jatene e sua equipe publicaram a técnica de correção da transposição completa das artérias com troca da aorta pela pulmonar, cirurgia hoje mundialmente aceita com o nome de "Switch Operation" ou "Cirurgia de Jatene".

Os laboratórios de hemodinâmica, que eram centros de diagnósticos, passaram a executar, também, procedimentos terapêuticos. Constantino Constantin introduziu a angioplastia em Curitiba, e Norberto Galiano, em São Paulo, fez a primeira desobstrução mecânica da artéria coronária, seguida pela primeira angioplastia coronária por Carlos Antônio Gottschall, no Rio Grande do Sul, e por Pierre Labrunie, no Rio de Janeiro. Logo a angioplastia tornou-se um tratamento bem aceito e usado em todo o País. José Eduardo de Souza havia mostrado, no exterior, um bom número de casos de infarto agudo tratado por angioplastia, trabalho esse que só não se tornou histórico por questão de minúcias na perspectiva de apresentação, já que não se desfazia a polêmica entre trombo e infarto. Diz Salvador Borges Filho, ilustre hemodinamicista de Niterói, que a hemodinâmica viveu, intensamente, a primeira fase de caráter diagnóstico e se engajou, com todo o vigor, nas conquistas terapêuticas do cateterismo cardiovascular. O entusiasmo pelo método foi aumentando e, em 1975, havia no Brasil 134 hemodinamicistas. O progresso foi tão rápido que, em 1978, Walmir Fontes, no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo, realizou a primeira atriosseptostomia, evitando a morte de uma criança com transposição das grandes artérias. Nos laboratórios de hemodinâmica, atualmente, fecham-se o canal arterial, a CIA e a CIV por meio de ousados procedimentos, como também se dilatam, de maneira rotineira, a estenose aórtica congênita, a estenose pulmonar, a coarctação da aorta e a estenose mitral com a técnica de dilatação por balão.

Em relação à estenose aórtica adquirida, essa técnica não tem tido tanto sucesso, pois não se trata de soldadura das comissuras, mas de espessamento e calcificação das lacínias que não se prestam à dilatação por balão. Todas essas técnicas de dilatação originaram-se do trabalho de Gruentzig, em 1977, na Suíça, e de imediato foram aqui reproduzidas. A angioplastia passou a ser um procedimento de rotina, e agora complementada por próteses endovasculares — os stents — e outras técnicas, tais como aterectomia e ablação do ateroma por laser, a respeito do que há trabalhos originais de Egas Armelin e Radi Macruz em São Paulo.

Em 1977, um fato importante foi a publicação de um texto sobre "Fisiologia Cardiovascular", dedicado principalmente aos cardiologistas e aos estudantes de pós-graduação. Esta obra, que teve a colaboração de vários fisiologistas, foi fruto de atuação de Dalmo S. Amorim como presidente do Departamento de Fisiologia Cardiovascular e Respiratória da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Seu conteúdo exerceu forte influência na elevação dos conhecimentos básicos de fisiologia cardiovascular e respiratória de várias gerações de cardiologistas brasileiros.

Novos e importantes medicamentos foram lançados, nesta década, tais como a amiodarona, de procedência européia, e os bloqueadores de cálcio, da Europa e do Japão. Tivemos também vasodilatadores, tipo minoxidil e diazóxido, que agem abrindo os canais de potássio da célula muscular lisa. Deve-se chamar a atenção para o fato de que o amplo uso da penicilina nas amigdalites de repetição fez cair, de maneira importante, a ocorrência de febre reumática e suas seqüelas valvares. Surgiram mais e mais antibióticos à disposição da Cardiologia, que vieram melhorar a profilaxia e o tratamento da endocardite infecciosa, como a ampicilina, a gentamicina, a amoxicilina e a vancomicina.

A promoção da saúde e a prevenção das doenças, e não apenas o tratamento das cardiopatias, começaram a ser valorizadas pelos cardiologistas do País, que incentivaram o controle dos fatores de risco como o tabaco, a vida sedentária e a obesidade. A conscientização dos médicos é indispensável para a tomada de uma nova visão da Cardiologia, que estava dando seus primeiros passos.

A presença, na estrutura científica, das agências governamentais, como o CNPq e a CAPES, pelo número de bolsas de formação e de pesquisa que ofereciam a jovens médicos e investigadores brasileiros, tanto aqui como no Exterior, foi outro fato marcante. Essas bolsas elevaram o nível científico nacional a graus nunca antes atingidos, e o seu efeito, entre os cardiologistas, foi muito salutar.

No início da década de 80, os exames de medicina nuclear aplicados à Cardiologia começaram a ser largamente empregados, principalmente o estudo da perfusão miocárdica com o tálio e, depois, com a isonitrila, tanto em repouso como em esforço, que fornece boa informação sobre a irrigação coronária, tornando-se assim dado precioso na avaliação da isquemia miocárdica. Infelizmente, devido ao preço da aparelhagem, tais exames são disponíveis apenas nos grandes centros. Mas, certamente, assistiremos à sua difusão dentro em breve.

 

Índice     Anterior     Próximo