Cem Anos da História da Cardiologia no Brasil 

Continuação

 

A farmacologia brasileira, mais uma vez, marcou sua presença na área de cardiologia quando Sérgio Ferreira e sua equipe descobriram, num experimento singular, que o veneno da jararaca era capaz de intensificar a resposta à bradicinina, mediante o que o denominaram de FPF (fator de pontenciação da bradicinina). O veneno continha um peptídio inibidor da enzima conversora da angiotensina I em II que, por sinal, é a mesma que degrada a bradicinina (por isso chamada de cininase). Após essa descoberta, foram sintetizados vários outros peptídios, o primeiro deles o teprotide, de ação hipotensora. Passou-se a procurar um similar por via oral e, em 1977, Cushman e colaboradores chegaram ao captopril, dando início a um fantástico campo terapêutico que havia começado, em Ribeirão Preto, com Sérgio Ferreira, agraciado, em 1983, com o Ciba Award por sua descoberta.

A fonocardiografia como método clínico declinava. O fonocardiógrafo tinha sido um instrumento precioso para a compreensão dos ruídos cardíacos, explicando sua formação e desenvolvendo os conhecimentos da dinâmica e da fisiologia cardíaca, tudo de uma maneira clara e fácil. Mesmo após seu desuso na prática clínica, continuei a ensiná-lo na pós-graduação da PUC, pela vantagem que ele trazia ao raciocínio dos fenômenos dinâmicos do coração.

Como que para compensar o desaparecimento da fonocardiografia, surgiu, na década de 70, a cineangiocoronariografia, que, de modo rápido e firme, se implantou em todos os laboratórios de hemodinâmica, já parcialmente aparelhados para executá-la. Mason Jones, na Cleveland Clinic, e Judkins, na Califórnia, foram os autores desse método, cujos resultados satisfizeram a necessidade de um meio prático e seguro para a avaliação anatômica da árvore coronária. Instituições especializadas do Rio, São Paulo e Porto Alegre, como bem ressaltou Ely Toscano Barbosa, muito contribuíram para o desenvolvimento da semiologia da doença arterial coronária, levando um grande número de ergometristas, hemodinamicistas e cirurgiões a correlacionar os seus dados, pois já havia um padrão-ouro. Em conseqüência disso, novas, precisas e elegantes técnicas de diagnóstico de coronariopatias foram desenvolvidas. Graças à credibilidade da cineangiocoronariografia e do aperfeiçoamento da cirurgia cardíaca com a circulação extracorpórea, a correção das estenoses coronárias, imaginada e executada originariamente pelo cirurgião argentino René Favaloro, na Cleveland Clinic, tornou-se uma cirurgia ao mesmo tempo comum e eficiente.

Os clínicos, por sua vez, estavam assistindo ao aparecimento de fármacos confiáveis. Surgiram a digoxina, que passou a dominar a prescrição dos digitálicos; os diuréticos tiazídicos e de alça; os diuréticos poupadores de potássio; os anticoagulantes orais tipo cumarínicos; os anti-hipertensivos de ação central, tipo alfametildopa e clonidina; os vasodilatadores periféricos, tipo hidralazina; os bloqueadores alfa-adrenérgicos, tipo prazosin. Também foram lançados os agentes beta-bloqueadores adrenérgicos, cujo protótipo, o propranolol, causou uma revolução farmacológica e levou seu descobridor, James Black, ao prêmio Nobel. Tudo isto o cardiologista brasileiro acompanhou, participando e contribuindo com pesquisas de alta qualidade.

Um dos meios modernos de assegurar a vida, em situações de morte súbita ou afogamento, é a ressuscitação cardiopulmonar. Dois cardiologistas paulistas, Ari Timerman e Josef Feher, foram os pioneiros na sistematização e divulgação desse conhecimento com o livro "Ressuscitação Cárdio-Pulmonar", de 1979.

A divulgação do teste ergométrico, como exame de rotina, deveu-se a Josef Feher e Hélio Magalhães, do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo. Mais tarde, Gilberto Marcondes Duarte lançou seu livro "Teste Ergométrico", ajudando amplamente a difundir os conhecimentos desse método. Os trabalhos de Jorge Ilha Guimarães e Antônio Sbissa, no Sul; Fábio Sandoli de Brito e Álvaro Bellini, em São Paulo; e Maurício Rocha, Augusto Heitor Xavier de Brito e Augusto Bossa, no Rio de Janeiro, muito contribuíram para firmar o papel da ergometria como método indispensável no diagnóstico das doenças do coração, em geral, e das coronariopatias, em particular. A ergometria tornou-se, no Brasil, um método usado pela maioria dos cardiologistas, acessível a todas as clínicas e hospitais. Os fundamentos científicos da fisiologia do exercício foram incorporados ao conhecimento médico e suas conseqüências. Da aplicação da ergometria desenvolveu-se a reabilitação cardíaca.

A década de 70 foi rica em iniciativas e novidades no que se refere ao progresso das doenças do coração. Foi ela, segundo Ely Toscano Barbosa, "a década da ampliação do desempenho da Cardiologia". Essa declaração está bem representada nas descrições que faremos a seguir. Somávamos, então, 5.000 cardiologistas!

Em abril de 1970, Adib Jatene e colaboradores publicaram os 14 primeiros casos de tratamento cirúrgico da insuficiência coronária com ponte de safena. Nunca, na história da medicina, uma ousadia como esta foi tão aguardada. A sociedade percebeu a vantagem da prevenção do infarto e/ou da angina instável, numa operação bem estudada e sistematizada, permitindo que se evitassem a disfunção ventricular, as arritmias malignas ou a morte prematura. O alcance da técnica que iniciava era imprevisível e, rapidamente, espalhou-se ela pelo Brasil inteiro, permitindo o prolongamento da vida, freqüentemente ceifada, de maneira súbita, pela doença coronária.

Foram publicadas nesse ano, também, os primeiros casos de colocação de marcapassos cardíacos artificiais descritos numa tese de José Feldman, no Rio de Janeiro. A colocação do marcapasso corrigia, de maneira permanente, o bloqueio AV, sempre de funestas conseqüências. Esta foi uma vitória da microeletrônica, que colocou à nossa disposição o aparelho mais fantástico, preciso e útil que se possa imaginar. Seja por implantação epicárdica ou endocárdica, o marcapasso permitiu uma vida normal aos pacientes, e, mais do que isso, seu mecanismo só disparava quando solicitado, poupando a pilha que o alimentava, de acordo com o aparecimento de novos modelos chamados "de demanda". Foram surgindo aparelhos unipolares, bipolares, atriais, programáveis e, atualmente, de dupla câmara e com biossensores com pilhas de longa duração. Um sucesso tão grande de técnica e resultados levou Décio S. Kormann a propor a criação de um "Departamento de Estimulação Cardíaca Artificial" no seio da Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, e José Carlos Pachon Matheos a produzir o primeiro cardioestimulador transesofágico no Brasil.

 

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