Cem Anos da História da Cardiologia no Brasil

Continuação

 

Ainda nos anos 50, a insuficiência cardíaca passou a ser mais bem compreendida graças a médicos como Nélson Botelho Reis, no Rio, e Cantídio de Moura Campos, em São Paulo. As novas apresentações digitálicas e os diuréticos de alça ajudaram a entender a fisiopatologia dessa disfunção. Os pacientes, antes quase sempre internados para tratamento, eram agora assistidos nos consultórios e ambulatórios, o que resultava não só numa grande economia, mas também numa mudança de mentalidade do cardiologista.

Por esse tempo, o Instituto de Cardiologia Sabbato D’Angelo, de São Paulo, sob a liderança de Hugo Filipozzi, Adauto Barbosa Lima, Maria Vitória Martins e Hortêncio Medeiros, que tanto brilharam na Cardiologia pátria, melancolicamente cerrou suas portas porque as fontes de financiamento se esgotaram. Fato duplamente lamentável, porque seus membros, além de bem organizados, possuíam um ótimo nível científico. De outro lado, porém, Luiz Décourt e Wilson Cossermelli estudaram intensamente os aspectos do proteinograma eletroforético na fase ativa da febre reumática. Daí nasceu o notável livro de Décourt, intitulado "Doença Reumática", que se constituiu num clássico da literatura cardiológica brasileira.

Assistimos nestes anos a grande explosão da cirurgia cardíaca a céu aberto. A princípio, com Euríclides Zerbini, Correa Neto e Delmont Bittencourt, em São Paulo. O coração-pulmão artificial tornou possível as cirurgias intracardíacas e dos grandes vasos, aparecendo logo uma ampla casuística de cardiopatias congênitas e adquiridas operadas com circulação extracorpórea. Em função da necessidade de um diagnóstico apurado, indispensável para levar o paciente à mesa cirúrgica com a máxima segurança, os métodos complementares tiveram um grande e rápido desenvolvimento. Na década de 50, a cirurgia cardíaca firmou-se como uma alternativa terapêutica válida e em ascensão. Consolidou-se, também, a utilidade e a segurança de sua realização, pois a circulação extracorpórea proporcionava a possibilidade desses êxitos.

De 1950 a 1960, o número de cardiologias dobrou, chegando a 800, mostrando que, como especialidade, a Cardiologia estava bem estruturada.

Na década de 60, a Associação Médica Brasileira e a Sociedade Brasileira de Cardiologia começaram a outorgar o título de "Especialista em Cardiologia", concedido por prova ou currículo, estabelecendo critérios para balizar a especialidade e diferenciar o profissional que se dedica aos pacientes com doenças do coração.

Também nesses anos iniciou-se a aplicação da medicina nuclear no Brasil. No Rio de Janeiro, o Hospital Central do IASERJ abriu seu Serviço de Medicina Nuclear, dirigido por Villela-Pedras.

As técnicas de cateterismo cardíaco para fins diagnósticos tornaram-se bem estabelecidas e, quando associadas à angiografia, mudaram o perfil do conhecimento das doenças do coração e dos vasos. Já era então possível reconhecê-las de maneira precisa e quantificá-las de maneira aproximada, dando uma idéia correta da sobrecarga que estavam causando ou da pressão a que estavam sujeitas. Até essa época, a grande maioria das cirurgias eram usadas para corrigir defeitos congênitos ou valvas deformadas pela febre reumática. Dessa década em diante, cirurgias mais sofisticadas tornaram-se possíveis graças ao coração-pulmão artificial, à assistência anestésico-ventilatória moderna e ao melhor controle dos distúrbios hidroeletrolíticos. Os médicos que tiveram a primazia de usar aparelhos mais sofisticados de cateterismo foram Pierre Labrunie e Salvador Borges Filho, no Rio de Janeiro, Siguemituso Ariê e José Eduardo Souza, em São Paulo, Carlos Antônio Gottschall, no Rio Grande do Sul, Egas Armelin e Donaldo Pereira Garcia, em São Paulo, fazendo a transição entre os aparelhos mais primitivos e os mais sofisticados. Já mais tarde Ronaldo Villela, Stans Murad Neto e Paulo Sérgio de Oliveira, no Rio, e Wilson Pimenttel e Lélio Alves da Silva, em São Paulo, adquiriram uma grande experiência com a cinecoronariografia e todas as suas sutilezas. O mesmo aconteceu com José Nogueira Paes Filho, no Ceará, na década de 80; José Armando Mangioni e Fausto Feres, em São Paulo; Gilvan Dourado, em Alagoas; José Silvério Guimarães, em Goiás; e Heitor Ghissoni de Carvalho, na Bahia, que se distinguiram nesse fantástico campo. Todos esses conhecimentos foram condensados num livro útil, de Leslie Aloan, intitulado "Hemodinâmica e Angiocardiografia".

Na década de 60, os primeiros sistemas acessíveis de circulação extracorpórea e os primeiros oxigenadores de bolha foram industrializados no Brasil, facilitando o trabalho de qualquer cirurgião ousado que pretendesse operar o coração. Assim apareceram José Wanderley Neto, em Alagoas; Shariff Moyses, em Vitória; José Jasbik Neto, em Campo Grande; Fernando Lucchese, em Porto Alegre; José Teles Mendonça, em Aracaju; Hibraim Kahadi, em Goiás; todos eles contribuíram de uma maneira ou de outra para o moderno pensamento cirúrgico brasileiro, cheio de idéias originais. Não devemos esquecer as contribuições de Edgard San Juan, Carlos Bento de Souza, Geraldo Verginelli, Paulo Paulista, Ênio Buffolo, em São Paulo; Waldir Jazbik, Paulo Rodrigues da Silva, Gilson Maurity, Zildomar Deucher, Marco Antônio Cunha e Geraldo Ramalho, no Rio de Janeiro; Nilzio Ribeiro e Alfredo Ramalho, na Bahia; Iseu Affonso da Costa e Paulo Brofman, em Curitiba; Raul Correa Rebelo, em Belo Horizonte; André Esteves Lima e Cid Nogueira, em Brasília; Eduardo Regis Jucá, em Fortaleza; e Ivo Nesralla, em Porto Alegre. É justo destacar os trabalhos originais de Carlos Moraes, no Recife, no tratamento cirúrgico da endomiocardiofibrose. Vemos, assim, que a evolução técnica da cirurgia cardíaca brasileira é uma história de pioneirismo, originalidade e ousadia que nos deixa felizes e orgulhosos.

Em maio de 1968, aconteceu um fato de grande importância na história da Cardiologia brasileira: Euríclides Zerbini realizou o primeiro transplante de coração no INCOR, engrandecendo o nome e o prestígio daquela instituição. Delmont Bittencourt, um conceituado cirurgião, foi o especialista que retirou o coração do doador, entrando também para a história dos transplantes cardíacos. Participaram daquele evento Geraldo Verginelli, Miguel Barbero Marcial, Sérgio Almeida de Oliveira e muitos outros. Este acontecimento singular mostrou a capacidade de realização da cirurgia brasileira e o muito que dela se esperava. Um dos resultados benéficos foi o grande destaque que a imprensa deu à Cardiologia a partir de então.

 

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