ABC | Volume 114, Nº5, Maio 2020

Editorial d´Avila et al. COVID 19 Arq Bras Cardiol. 2020; 114(5):753-754 Na cardiologia, casos de futilidade e malefícios são inúmeros e gritantes. O uso de fármacos antiarrítmicos para prevenção de morte súbita em pacientes com extrassístoles ventriculares após infarto agudo do miocárdio (IAM), de magnésio para redução da área infartada e de betabloqueador na síncope vasovagal consiste em alguns exemplos da enorme diferença entre a expectativa (ou o senso comum) e o real efeito de intervenções terapêuticas. Sem esses estudos, milhares de pacientes teriam sido submetidos a procedimentos ineficazes, dos quais, em vez de benefícios, derivariam apenas complicações. Na situação atual de enfrentamento da COVID-19, vale a pena mencionar que todas as alternativas supostamente milagrosas (desde o uso de doses maciças de vitamina C, D e zinco até o uso de macrolídios, cloroquina e derivados, corticosteroides, antivirais e outras medicações) já foram testadas em outras viroses e epidemias, tais como HIV, Ebola e H1N1. Infelizmente, apesar da expectativa inicial, não se mostraram seguras ou eficazes nesses ensaios anteriores. Naturalmente, o efeito de algumas dessas intervenções pode ser diferente na pandemia atual. Tal hipótese, no entanto, precisa ser avaliada e provada com todo o rigor científico que a urgência e a gravidade da situação impõem. Infelizmente, a maioria dos trabalhos iniciais utilizados para basear a indicação de diversas intervenções no combate à COVID-19 é um exemplo de pseudoevidência. São cientificamente risíveis. Tomemos como exemplo o estudo que popularizou a hidroxicloroquina 1 (aquele citado por Donald Trump como tendo “probabilidade de ser uma das maiores descobertas da história da medicina”). Os autores do trabalho investigavam se pacientes com COVID-19 teriam melhor desfecho com a hidroxicloroquina. Para tanto, teria sido mandatório que, de dois grupos semelhantes de pacientes, apenas um tivesse recebido o fármaco. Parece elementar, mas não foi isso que aconteceu: além do remédio diferente, os grupos eram de hospitais distintos, tinham idades diversas, apresentavam condições clínicas e tratamentos variados, além de cargas virais diferentes. Assim, como isolar o efeito do remédio? Além disso, os quatro pacientes que morreram ou foram à unidade de terapia intensiva (UTI) – aliás, todos tomando hidroxicloroquina – foram eliminados dos resultados, o que sugere que, para alguns, um óbito possa ser menos relevante do que a detecção de vírus na nasofaringe. Além disso, o tamanho da amostra, queixa comum de vários revisores, foi muito pequeno, não permitindo definir qualquer possível efeito de tratamento. É decepcionante quando um estudo não consegue responder à pergunta proposta. É pior quando isso gera uma convulsão social. O mais dramático, no entanto, é saber que tal artigo passou por uma revisão de pares e por um editor que, se tivesse agido de forma responsável, abrindo mão do frenesi do aumento do número de acessos ao website da revista e da notoriedade imediata, poderia ter evitado essas consequências em bola de neve. Uma pandemia não justifica o esquecimento da ciência e os erros que criam falsas esperanças que potencialmente coloquem vidas em risco. A atitude de médicos e cientistas no mundo varia com relação à interpretação desses dados. Muitos achamque aquela evidência sobre o uso da cloroquina justifica a prescrição do medicamento, mas essa posição está longe de ser unânime. Vários colegas médicos que contraíram a COVID-19 aceitaram participar de estudos clínicos randomizados, contribuindo para que uma resposta metodologicamente adequada fosse alcançada, com potencial benefício a milhares de pessoas. Nesse sentido, para esta e outras eventuais pandemias, vale lembrar que somente estudos clínicos rigorosos realizados com a colaboração de profissionais, hospitais e sociedades médicas do mundo todo, e liderados por especialistas em pesquisa clínica, podem oferecer as respostas corretas, nos livrando da mazela do curandeiro, que capitaliza o sucesso da eventual melhora e, no caso de um desfecho inadequado, sugere que o paciente não foi merecedor da dádiva por ele oferecida. Médicos, outros profissionais da saúde, cientistas e as sociedades que os representam têm o dever de nos livrar do retrocesso que o não entendimento do método científico acarreta, além da obrigação de nos lembrar de que o senso comum erra e que nosso estado de humor coletivo não pode justificar deslizes metodológicos que possam impactar milhares de vidas. Espera-se que os médicos façam o que sabem fazer de melhor: agir à luz da ética, de forma pragmática, com base no melhor que a ciência pode oferecer. Sejamos realmente especialistas quando os dados de alta qualidade científica estiverem disponíveis. Afinal, a verdade sempre prevalece, e a ciência é a ferramenta que mais rapidamente nos aproxima dela. Como médicos e cientistas, nosso papel é encurtar o caminho entre a hipótese e a conclusão fundamentada, tanto para benefício dos pacientes sob nossa responsabilidade quanto para a população que anseia por uma resposta segura da ciência médica. Agradecimentos Os autores gostariam de agradecer o Dr. Andre Zimerman e ao sr. Julio Tude d’Avila pelas sugestões e revisão critica desse manuscrito. 1. Gautret  P, Lagier JC, Parola P, Hoang VT, Medded L, Mailhe M, et al. HydroxychloroquineandAzithromycinasaTreatmentofCOVID-19:Results of an Open-Label Non-Randomized Clinical Trial. Int J Antimicrob Agents. 2020 March ; In Press DOI: 10.1016/j.ijantimcag.2020.105949 Referências Este é um artigo de acesso aberto distribuído sob os termos da licença de atribuição pelo Creative Commons 754

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