ABC | Volume 114, Nº5, Maio 2020

Editorial Pandemônio Durante a Pandemia: Qual o Papel dos Profissionais da Saúde e a Ciência? Pandemonium During The Pandemic: What Is The Role Of Health And Science Professionals? André d’Avila, 1 Marco F. Vidal Melo, 2 Renato D. Lopes 3 Serviço de Arritmia Cardíaca, Hospital SOS Cardio, 1 Florianópolis, SC – Brasil Department of Anesthesia, Critical Care and Pain Medicine, Massachusetts General Hospital, Harvard Medical School, 2 Boston, MA – USA Division of Cardiology, Duke Clinical Research Institute, Duke University School of Medicine, 3 Durham, NC – USA Correspondência: Andre d’Avila • Hospital SOS Cardio - Serviço de Arritmia Cardíaca - SC 401.121. CEP 88030-000, Florianópolis, SC – Brasil E-mail: andredavila@mac.com Palavras-chave Coronavirus; COVID-19; Pandemias; Hydroxychloroquina/ efeitos da medicação; Azitromicina/efeitos adversos; Aprovação de Drogas; Comitê de Ética em Pesquisa; Mídias Sociais. A conduta dos comentaristas esportivos brasileiros durante a recente pandemia da COVID-19 merece destaque. Dia após dia, mesmo socialmente distantes, eles vêm à televisão dar a sua contribuição para amenizar o desconforto do público. Durante horas, discutem exaustivamente jogos do passado, problemas atuais e o futuro do esporte sobre o qual se especializaram. Em nenhum momento, no entanto, se arriscam a comentários fora da sua área. Mesmo que, como cidadãos, tenham uma opinião sobre a gravidade da COVID-19, sobre o benefício do distanciamento social ou sobre o uso de medicamentos sem comprovação científica, preferem continuar restritos às áreas de excelência nas quais são reconhecidos como especialistas, pois conhecem aquele assunto melhor que ninguém. Mais difícil de compreender, entretanto, é a postura dos que insistem em emitir opinião não fundamentada sobre várias intervenções no tratamento da COVID-19, mesmo sabendo que não há confirmação baseada em alto nível de evidência do potencial efeito benéfico dessas recomendações. Alguns simplesmente optam pelo proselitismo médico. Outros, por não reconhecerem nem entenderem a necessidade da investigação clínica adequada, preferem a omissão: não aprovam nem desaprovam nada, deixando a população sem nenhum referencial. 1 Contudo, o tipo de atitude mais comum talvez seja a do médico assustado pelo desconhecido, desesperado por seus entes queridos e pacientes, pressionado por respostas e influenciado pelo bombardeio das informações nas mídias sociais e que, por isso, agarra-se à possibilidade de um tratamento redentor. Infelizmente, a única doença tratada com essa abordagem costuma ser a ansiedade dos próprios médicos e seus pacientes. Dentro desse panorama desolador de incertezas, informações desencontradas e ausência de lideranças, a torrente de asserções com início e eco nas inúmeras mídias sociais transforma em verdade (ou pelo menos em expectativa) tudo o que é divulgado em primeira mão, por mais absurdo que seja. O único interesse é a notícia em si. As consequências não importam. Entretanto, ao desprezar o método científico rigoroso, com o álibi de tentar ajudar, criam um ambiente de confusão – ou pior, um ambiente que aumenta o risco daqueles que tomam tais asserções como verdadeiras. O rigor científico e ético da pesquisa como um todo, e na área médica em especial, beneficiou milhares de pacientes em todo o mundo por meio da pesquisa criteriosa, sem atalhos, realizada sob a orientação cuidadosa da Declaração de Helsinki de 1964. O princípio básico da Declaração é o respeito ao indivíduo que deve consentir sua participação e permanência no protocolo de pesquisa, visto que seus interesses precedem os interesses da ciência e da sociedade. No entanto, se o interesse do paciente se impõe aos interesses científicos, como justificar a necessidade de randomizar alguém que possa eventualmente ter o “azar” de ser alocado no grupo controle, talvez placebo, se no outro extremo existe, ou pelo menos se supõe que exista, esperança de cura? A resposta a essa pergunta deriva da aceitação do método científico: somente a demonstração objetiva e quantificável, acima de mera casualidade da eficácia e efetividade de qualquer intervenção, merece aceitação, ainda que várias ideias pareçam viáveis e eficazes em etapas preliminares. A existência do grupo controle é essencial nesse aspecto. Este deve oferecer ao participante do ensaio clínico uma relação benefício/risco presumivelmente equivalente (“equipoise”) àquela da intervenção baseada nas evidências disponíveis quando da implementação do estudo. Assim, uma medida objetiva de comparabilidade da intervenção é imposta e deve ser vencida. Além disso, sabe-se que pacientes que participam de ensaios clínicos evoluem melhor que aqueles que não entram em tais pesquisas, mesmo quando alocados ao grupo controle ou placebo. Lembremos, portanto, que a maneira mais segura de tratar um paciente quando não temos a resposta é incluí-lo em um ensaio clínico, pois somente assim haverá o melhor tratamento possível, sob supervisão direta, enquanto ajuda o avanço da ciência. A história da medicina é farta de exemplos de tratamentos considerados “absolutamente efetivos” que mostraram- se fúteis ou até maléficos após a realização dos ensaios clínicos randomizados, considerado o padrão-ouro para se definir eficácia e segurança de qualquer intervenção em medicina. DOI: https://doi.org/10.36660/abc.20200320 753

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