IJCS | Volume 31, Nº4, Julho / Agosto 2018

452 Mallet et al. Cinema e cardiologia Int J Cardiovasc Sci. 2018;31(4)451-453 Ponto deVista essa cena podemos discutir questões éticas e técnicas, como etiologias possíveis de insuficiência cardíaca, tratamento da doença, seus mecanismos de morte, seu prognóstico. Nessa cena tambémpodem-se perceber formas diferentes de reagir a essa conversa, sempre difícil, em especial a reação apresentada pelo paciente e por sua esposa. Conversas sobre a revelação de diagnósticos e prognósticos de doenças ameaçadoras à vida, também denominadas más notícias, são consideradas uma das mais difíceis atribuições imputadas ao médico. Más notícias podem ser consideradas, no campo da saúde, como qualquer informação cujo conteúdo vai afetar drasticamente a perspectiva de futuro de quem a recebe e a de seus familiares. Dificuldades na comunicação de más notícias fazem com que as discussões sobre a fase terminal da doença, a proximidade damorte e a indicação para cuidados paliativos exclusivos sómuito tardiamente sejam realizadas com o paciente e a sua família. 2-4 Mas podemos debater também questões mais espinhosas ao nos depararmos com essa condição: o que dizer quando o paciente nos pergunta “quantos anos de vida eu tenho, doutor(a)?”, “eu vou conseguir ver meu filho se formar?”, “eu vou ver meu neto crescer?”, e todo um sem número de perguntas que atravessa sua mente. Talvez uma saída que tenhamos adotado seja não permitir que exista espaço para que esses questionamentos sejam realizados. Essa, além de não ser uma solução adequada, adia, de alguma forma, esse enfrentamento. Muitas vezes esse adiamento acaba por evitar, de verdade, essa discussão já que muitas vezes o paciente evolui para um momento em que fica claro para todos, pacientes e familiares, o desfecho final. Esse adiamento acaba prejudicando a comunicação com o paciente e os familiares, fazendo com que esses só muito tardiamente tomem conhecimento sobre a realidade da situação. A discussão a partir dessa cena pode ir além da medicina como comentado até agora quando percebemos que o diagnóstico é realizado por uma médica, uma médica de origem oriental. Isso pode nos levar a um debate sobre a nossa realidade na medicina brasileira, onde percebemos na graduação uma preponderância do sexo feminino. Será que isso mudará de alguma forma a prática médica? Será que isso mudará a relação médico- paciente? E a questão da origem asiática da médica coloca a discussão sobre “o outro”, “o estrangeiro” em um país que nesse momento parece querer se afastar de sua tradição cosmopolita. Talvez possamos fazer alguns paralelos com a questão das faculdades de medicina no nosso país, onde, através das cotas, das ações afirmativas, do ProUni e do FIES passou a frequentar a medicina, um dos cursos mais elitistas do país, um “outro” que até tempos atrás não era visível nesses cursos. Outrofilmeexibidoem2016,quetambémtratadaquestão da insuficiência cardíaca,mas agora sobumaóticabemmais social, foi “Eu, Daniel Blake”, dirigido pelo premiado Ken Loach e Palma deOuro no Festival de Cannes. Nesse filme, passado na Inglaterra, Daniel Blake, interpretado por Dave Johns, após sofrer um ataque cardíaco, é desaconselhado por sua médica a retornar a seu trabalho de carpintaria e, portanto, busca conseguir os benefícios concedidos pelo governo aos pacientes que se encontram nessa situação. E começa assim a via crucis de Daniel Blake em busca de seus direitos. Ele enfrenta a burocracia do sistema, a frieza das instituições que supostamente existem para facilitar a vida dos pacientes, as dificuldades que são ampliadas pelo seu analfabetismo digital e todo um processo que nos faz inclusive pensar no livro “O Processo”, de Franz Kafka, que aborda o angustiante, semsentido e perverso processo burocrático a que os cidadãos estão submetidos. Assistir a esse filme pode trazer para a sala de aula discussões que raramente são abordadas em aulas que tratam de infarto ou de insuficiência cardíaca, mas que são extremamente frequentes quando estamos diante de pacientes que vivenciam essas condições. Quem já não ouviuapergunta: “Doutor(a), eupossovoltar a trabalhar?”, “Doutor(a), eu tenho direito a me aposentar?”, “Como eu faço para termeu benefício?”, “Doutor(a), eles tirarammeu benefício. E agora, o que eu faço?”. Essas são situações tão frequentes para os que acompanhampacientes pós-infarto do miocárdio e pacientes com insuficiência cardíaca, que temos que conhecer umpouco da legislação, buscando, de uma forma responsável, orientar nosso paciente quanto aos seus direitos e fornecendo laudos que permitam assegurar esses direitos. Em geral, esses laudos precisam ser renovados sistematicamente, o quemuitas vezes causa umacanhamentonopaciente que sente estar incomodando seu/sua médico(a) ao solicitar seu preenchimento. Como temas adicionais na discussão desse filme encontramosmais uma vez a questão do “outro”. Durante suas inúmeras idas aos departamentos governamentais, Daniel Blake encontra uma mulher branca que acaba de se mudar para a cidade e que também busca apoio social. Ela tem dois filhos, sendo um deles uma menina negra que também sofre diante da insensibilidade da seguridade social. E claramente as dificuldades sãomuito maiores para os nossos pacientes que para os cidadãos ingleses, embora esse filme nos mostre que a burocracia e a insensibilidade não são privilégios nossos.

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