ABC | Volume 115, Nº2, Agosto 2020

Editorial Barreto-Filho et al. Incertezas e Decisão Compartilhada Arq Bras Cardiol. 2020; 115(2):149-151 Ser dogmático, promovendo a prescrição de drogas antes de testes de fase III, deve ser considerado heresia científica contemporânea. Cuidado não embasado em evidências não necessariamente representa um bom cuidado. A suposta “inércia” de não se prescrever uma terapia por carência de lastro na evidência é, na maioria das vezes, uma boa prática médica. Em tese, a probabilidade pré-teste de uma droga A, nunca testada em um determinado cenário, ser eficaz é muito remota. Daí a normatização de se usar o ensaio clínico experimental como palavra final. Não é incomum hipóteses lastreadas por suporte mecanístico ou estudos observacionais não serem confirmadas por ensaios randomizados. Cláusula pétrea, na ciência, o ônus da prova encontra‑se na comprovação da eficácia e não na comprovação da ineficácia e, assim, partimos da premissa inicial do pensamento científico, a hipótese nula deve ser formalmente rejeitada para a comprovação do fenômeno. Apenas o argumento de uma terapia ser segura não justifica o uso de uma droga ineficaz. A comprovação do benefício é condição essencial para se cotejar os resultados positivos com os eventuais riscos de uma determinada droga. No caso da CQ/HCQ, temos a seguinte situação: a maioria dos estudos observacionais aceitáveis não comprovaramo benefício da droga e sua segurança ainda não foi definida. E qual seria o norte para a tomada de decisão com tantas incertezas, pressão pandêmica e ausência de evidências? Antes, é importante destacarmos que a falta de evidência de efeito não significa evidência de nenhum efeito. Negar, categoricamente, um potencial benefício não parece também ser o melhor caminho. É duvidoso seCQ/HCQ temuma probabilidade a priori que justifique grandes esforços científicos. Mas, mesmos para casos emque essa probabilidade seja razoável, a primeira opção seria em se comprometer com a tarefa de direcionar pacientes para serem alocados em ensaios clínicos. Um esforço coletivo, solidário e articulado poderia encurtar os tempos das incertezas. Não sendo possível, é compreensível, em uma situação de “guerra”, a proposta de uso off-label de fármacos, situação quando uma determinada droga, já devidamente registrada e aprovada em um cenário A, é liberada para um cenário B, sem estudos específicos; ou até o seu uso por compaixão (ou compassivo), quando uma droga, ainda experimental e sem qualquer registro junto a uma agência regulatória, é prescrita por falta de uma opçãomelhor e crença de que possa funcionar. Vale salientar que o uso compassivo é mais um ato de piedade que uma aposta no sucesso terapêutico. No calor e desespero atual, estamos vivenciando um pandemônio caracterizado por uma proliferação, sem precedentes, de informações de péssima qualidade e grande variabilidade na prática prescritiva observada na linha de frente. Entretanto, as diretrizes e os editoriais publicados nas revistas científicas mais conceituadas são categóricos em afirmar que ainda não temos terapias etiológicas efetivas cientificamente comprovadas em reduzir a mortalidade da COVID-19. 1 O tratamento de pneumonia viral continua a ser, basicamente, o de suporte e de intervenção nas diversas complicações clínicas que poderão surgir em uma minoria de pacientes. Reinventar o conhecimento, sobejamente alicerçado, e abandonar a liturgia do que reza a ciência clínica moderna parece ser um grande retrocesso à Idade das Trevas. E como tomar tal decisão, quando a incerteza é a regra? Assumir uma postura autoritária ou paternalista não é a rota mais prudente. A atual situação na qual nos encontramos talvez seja uma oportunidade única de por em prática o princípio da autonomia do paciente, iluminando a tomada de decisão médica. Historicamente, os pacientes sempre confiaram a tomada de decisões aos médicos. No entanto, durante as últimas décadas, pacientes tem sido incentivados a se tornarem ativos e participativos nas suas decisões sobre saúde. O documento “Crossing the Quality Chasm”, chancelado pelo Instituto de Medicina Americano, incentiva que uma voz ativa seja dada ao paciente em tudo que impactará sobre a sua vida. Operacionalmente, isso inclui informação transparente das expectativas e incertezas antes da tomada de decisão compartilhada. Embora entendamos a complexidade de se implantar um processo de decisão compartilhada na atual situação, a prescrição compulsória e indiscriminada de fármacos, sem eficácia e/ou segurança comprovadas neste cenário, não se afina comos valores atualmente preconizados. Interessante é que o princípio da autonomia do paciente se constitui em atributo que alicerça as bases do SUS, desde a sua fundação, e se alinha aos preceitos contemporâneos da Bioética. A autonomia corresponde à capacidade das pessoas decidirem alinhadas aos seus próprios valores. A base da autonomia reside no respeito aos direitos fundamentais do indivíduo, considerando-o um ser biopsicossocial e espiritual, dotado de capacidade para tomar suas próprias decisões. Em momento de pandemia, quando a incerteza se torna ainda mais evidente, o resgate desse princípio fundamental, dando voz aos pacientes na mesa de decisão, pode ser a ponte para que o binômio médico-paciente escolha o melhor caminho customizado às expectativas do maior interessado pelos bons resultados, o paciente. Assumir integralmente o controle de todas as decisões médicas, nos auto-enganando com uma certeza inexistente, pode ser sinal de imaturidade. É urgente transpormos o modelo hipocrático, no qual o médico deveria aplicar “ os regimes para o bem dos doentes, segundo seu saber e razão ...”, sem conceder um lugar à autonomia destes, para um modelo de assistência centrada no paciente e compartilhado. O momento atual exige um profissional atualizado, seguro, disponível para dialogar e convencer, de forma transparente, quais são as evidências factuais para uma tomada de decisão compartilhada. Separar o que é evidência científica dentro de tanta pseudociência clínica será tarefa cardinal. Ciência não se sustenta na fé, na crença e nem em opinião de autoridade. Pelo contrário, a dúvida e a incerteza são as principais motivações para se fazer a ciência avançar. É imprescindível perceber que as consequências das nossas decisões não são e não podem ser compartilhadas. Portanto, a prática médica para o enfrentamento da COVID-19 exige humildade em reconhecer as fronteiras do conhecimento científico atual. Compartilhar, com transparência, as incertezas e dúvidas, com os pacientes, poderá iluminar a tarefa, por demais pesada, de tomar decisões nesse atual cenário de muita escuridão. Essa parece ser uma grande oportunidade de aprendermos hoje e levarmos para o amanhã lições importantes que pavimentarão a utopia de uma “medicina que serve os doentes”. 150

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