ABC | Volume 115, Nº2, Agosto 2020

Editorial COVID-19 e Incertezas: Lições do Frontline para a Promoção da Decisão Compartilhada COVID-19 and Uncertainty: Lessons from the Frontline for Promoting Shared Decision Making José Augusto Soares Barreto-Filho, 1,2, 3 André Veiga, 2 Luis Claudio Correia 4 Universidade Federal de Sergipe - Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, 1 Aracaju, SE - Brasil Universidade Federal de Sergipe - Departamento de Medicina, 2 São Cristovão, SE - Brasil Emergência Cardiológica do Hospital São Lucas Rede São Luiz D’Or, 3 Aracaju, SE - Brasil Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, 4 Salvador, BA – Brasil Correspondência: José Augusto Soares Barreto-Filho • Universidade Federal de Sergipe - Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde - Rua Claudio Batista, s/n. Bairro Cidade Nova CEP 49.060-108, Aracaju, SE - Brasil E-mail: joseaugusto.se@gmail.com Palavras-chave COVID-19; Coronavirus; Pandemia; Medicina Baseada em Evidências; Bioética; Tomada e Decisão Clínica; Decisão Compartilhada; Uso Off Label. A COVID-19 já é a maior e mais mortal epidemia dos últimos cem anos. Profissionais da saúde, na linha de tiro, são cobrados, diuturnamente, a dar respostas e tomar decisões que impactam diretamente a vida dos infectados e os cientistas convocados para a tarefa hercúlea de, em tempo recorde, oferecer “remédios eficazes” para uma virose recém descoberta, e com um potencial mortal devastador. Com uma avalanche de informações nunca vista, o debate de como tratar os pacientes com a COVID-19 transcendeu a arena técnica e se tornou também ideológico e político. A ciência se lastreia em fatos. E o fato é que não temos disponível tratamento etiológico com eficácia e segurança comprovadas para combater o SARS-CoV-2. Por enquanto, apenas promessas no pipeline . Para exemplificar, o caso mais emblemático da falta de racionalidade no pensamento científico é a polêmica acerca da cloroquina/ hidroxicloroquina (CQ/HCQ) no tratamento da COVID-19. A CQ/HCQ é uma droga largamente utilizada, com sucesso, em portadores de malária e de lúpus eritematoso sistêmico. Contra a COVID-19, a droga impede a replicação do SARS- CoV-2 in vitro e modula a cascata inflamatória desencadeada pelo vírus. 1 Dados in vitro trazem plausibilidade biológica, porém plausibilidade não é o mesmo que probabilidade da hipótese ser verdadeira. A CQ/HCQ foi alçada à categoria de bala mágica por uma publicação francesa 2 cuja metodologia apresenta alto risco de viés e erro aleatório, não podendo ser definida como “evidência científica”. Entretanto, tal publicação foi superestimada, de forma crente ou ideológica, pelos menos fiéis aos preceitos e à liturgia da ciência. Contaminados por essa falácia e sentindo-se na obrigação de solucionar magicamente a pandemia, até presidentes se prestaram ao papel de propagandistas de fármacos, ajudando a virilizar uma pseudociência e ampliar a problemática de informações falsas. Mesmo na comunidademédico-científica, o debate também se tornou pouco racional e ideologizado. Uma das alegações dos entusiastas da CQ/HCQ era que, em um cenário de guerra, dever-se-iam utilizar as armas que estão disponíveis, mesmo sema comprovação definitiva de eficácia e/ou segurança clínica. Contrariando a máxima “Primum Non Nocere” , fazer mal seria perdoado, a inércia jamais. Em outro polo, alguns embarcaram no debatemaniqueísta ao valorizar, tambémde forma irracional, os estudos observacionais para argumentar prova de ineficácia. A ferrenha defesa do uso da CQ/HCQ seduz, pois existem efeitos fisiopatológicos plausíveis, verificados em laboratório, para se acreditar que a droga é eficaz. Porém, sua eficácia clínica não foi comprovada em nenhum modelo patológico de infecção viral aguda em humanos e muito menos na COVID-19. 3 O efeito finalístico de uma droga depende da resultante dos seus efeitos positivos e negativos. E tal resultante pode desencadear um efeito finalístico neutro (tratamento fútil), positivo (tratamento eficaz) ou negativo (tratamento maléfico). Antes do escrutínio científico rigoroso, não há como se prever. A função do ensaio clínico randomizado é provar, com precisão probabilística pela estatística, que a droga A causa melhora do paciente portador de uma doença B e não causa efeitos colaterais impeditivos à sua prescrição. Em um ecossistema científico organizado, conhecimentos prévios embasam os estudos futuros através de uma probabilidade condicional. Hipóteses improváveis, ainda não confirmadas, quando adotadas como política de saúde, ocasionam gastos desnecessários de recursos humanos e econômicos, geram falsas esperanças no inconsciente coletivo e, eventualmente, até significativo malefício. Para o médico treinado a responder de forma proativa, essa incerteza, em um cenário de comoção coletiva, pode ser extremamente desconfortante e, no desejo inconsciente de resolver o seu drama interno da impotência médica, ser traído por vieses cognitivos. Sendo a premissa contemporânea do nosso ofício crer em uma Medicina alicerçada na boa ciência, precisamos pausar nossas mentes agitadas pelo tsunami da pandemia para uma reflexão mais lúcida, lógica e iluminada pelo nosso credo. A história da ciência biomédica já devia ter nos ensinado, enquanto comunidade científica, que o desvio dos caminhos da ciência formal pode nos levar a um “curto caminho longo”. A busca por um atalho, no calor do desespero, poderá até contribuir com mortes que poderiam ser evitáveis, caso o potencial tóxico da CQ/HCQ, neste cenário, venha a ser verificado por ensaios clínicos randomizados. DOI: https://doi.org/10.36660/abc.20200582 149

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