ABC | Volume 114, Nº6, Junho 2020

Relato de Caso Ritt et al. COVID-19 e danos colaterais cardíacos Arq Bras Cardiol. 2020; 114(6):1072-1075 de qualidade de tratamento no contexto do IAM. Não menos importante é um curto tempo entre o início dos sintomas e chegada ao hospital. Diferente dos tempos de atendimento após a chegada no hospital que podem ser otimizados por fluxos e protocolos internos, o tempo até a chegada ao hospital é quase exclusivamente dependente da percepção do paciente e valorização de suas queixas. A pandemia de SARS-CoV-2 trouxe outras perspectivas de abordagem desta patologia, considerando o potencial risco de contaminação em ambiente de hemodinâmica, cujos procedimentos podem necessitar de uma maior invasividade, com uma inadequação do ambiente para o controle do espalhamento viral e segurança dos profissionais de saúde. 3 Publicação recente do epicentro desta pandemia pondera, inclusive, a possibilidade de terapia trombolítica para os casos confirmados com sintomas respiratórios da doença. 4 . O caso em questão ilustra um outro cenário da pandemia de SARS-CoV-2 tão preocupante quanto a própria pandemia per se. Estudos previamente publicados em outras epidemias virais sugerem um aumento da ocorrência de infarto do miocárdio, com maior propensão à inflamação e instabilidade de placa 5 e este também aparenta ser o racional para a infecção por SARS-CoV-2. 6 Entretanto, relatos emdiferentes centros mundiais apontam para uma redução na frequência de admissões por infarto, com estudo observacional apontando para uma queda de 40% no atendimento do infarto com supradesnível do segmento ST, com um discreto aumento na taxa de trombólise. 7 Esta queda paradoxal pode estar associada a uma redução da procura destes pacientes a unidades de pronto-atendimento, frente ao temor gerado pela pandemia, eventuais dúvidas quanto aos sintomas associados a SCA e infecção por SARS-CoV-2 e problemas logísticos de atendimento gerados pelo colapso do sistema de saúde. No nosso serviço, por exemplo, 21 pacientes foram atendidos na emergência no protocolo gerenciado de dor torácica entre 20/03/2020 e 08/04/2020, compatível com uma redução relativa de 74% em relação aomesmo período de 2019 e de 72% em relação ao mesmo período de 2018. Uma série de casos oriunda de um único centro de atendimento de infarto agudo em Hong Kong demonstrou significativo atraso no atendimento destes pacientes em comparação com uma série histórica do ano anterior, com o aumento da mediana de tempo de todos os indicadores de qualidade assistencial analisados e em especial no tempo de início dos sintomas ao primeiro contato médico (318 minutos, IIQ 75 – 458 vs. 82,5 minutos, IIQ 32,5 – 195). 8 Suspensão do uso de ieca/bloqueador da angiotensina e risco de eventos O paciente em questão havia suspenso por conta própria o uso do BRA. Apesar de não podermos definir um nexo causal entre a suspensão e a ocorrência do IAM, sabe-se que a descontinuação de medicações anti-hipertensivas pode contribuir para a maior ocorrência SCA . 9 A enzima conversora de angiotensina do tipo 2 (ECA-2) parece estar imbricada nomecanismo de internalização do SARS-CoV-2 a nível tecidual. Esta informação gerou especulações de que usuários de inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA) ou de BRA pudessem ter maior chance de infectar-se devido a upregulation da ECA-2. Não existem dados clínicos publicados que comprovem esta relação fora a observação mecanicista, a não ser o racional teórico. 10 Modelos experimentais em animais mostram efeitos inconsistentes de IECA e BRA sobre níveis de ECA-2 ou sua atividade tissular. 11 Ademais, estudos transversais nos campos de insuficiência cardíaca, fibrilação atrial, estenose aórtica e doença coronariana 12 resultaramematividade plasmática de ECA-2 semelhante, independente do uso ou não de IECA e BRA. Além disso, o nível plasmático de ECA-2 pode não ser marcador confiável da forma ligada àmembrana e faltam evidências de quemodificação dos níveis de ECA-2 ou atividade nos tecidos favoreçam a penetração do SARS-CoV-2. Neste cenário, as principais sociedades de cardiologia no mundo realizaram informativos e foram unânimes em orientar manutenção do uso dessas medicações, pois o risco de elevação rebote da pressão arterial ou de descompensação de quadros de insuficiência cardíaca poderiam acarretar potencial danoso maior. 13 Vale ressaltar que alguns estudos preliminares até sugerem que estas medicações possam ter efeito protetor reduzindo a inflamação pulmonar. 14 Conclusão No momento em que todos estão preocupados com os riscos potenciais da pandemia de COVID-19 precisamos estar atentos e alertar a população para que não deixe de valorizar sintomas sugestivos de eventos cardiovasculares e dos riscos relacionados à procura tardia de um atendimento de emergência. Os danos diretos do COVID-19 estão no topo da lista de discussões na mídia e nas revistas científicas, mas os potenciais danos cardiovasculares colaterais relacionados ao atendimento tardio de um paciente com evento vascular agudo não devem ser minimizados. Contribuição dos autores Concepção e desenho da pesquisa: Ritt LEF, VianaMS, Darzé ES; Obtenção de dados, Análise e interpretação dos dados e Redação do manuscrito: Ritt LEF, Viana MS, Feitosa GF, Oliveira AM, Souza FS, Darzé ES; Análise estatística: Ritt LEF, Viana MS; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Ritt LEF, Viana MS, Feitosa GF, Souza FS, Darzé ES. Potencial conflito de interesses Declaro não haver conflito de interesses pertinentes. Fontes de financiamento Opresente estudo não teve fontes de financiamento externas. Vinculação acadêmica Não há vinculação deste estudo a programas de pós- graduação. Aprovação ética e consentimento informado Este artigo não contém estudos com humanos ou animais realizados por nenhum dos autores. 1074

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