ABC | Volume 114, Nº6, Junho 2020

Relato de Caso COVID-19 e Eventos Coronários Agudos – Danos Colaterais. Um Relato de Caso COVID-19 and Acute Coronary Events – Collateral Damage. A Case Report. Luiz Eduardo Fonteles Ritt, 1, 2 M ateus S. Viana, 1, 2 Gustavo Freitas Feitosa, 1 Adriano Martins de Oliveira, 1 Fabio Solano Souza, 1 Eduardo Sahade Darzé 1,2 Hospital Cardio Pulmonar, 1 Salvador, BA - Brasil Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, 2 Salvador, BA - Brasil “O medo que tens, Sancho, faz com que nem vejas nem ouças direito — disse dom Quixote —, porque um dos efeitos do medo é perturbar os sentidos e fazer com que as coisas não pareçam o que são.” Miguel de Cervantes em Dom Quixote Paciente do sexo masculino, 49 anos, hipertenso há 8 anos, dislipidêmico, com histórico familiar de doença arterial coronariana (pai cursou com infarto aos 60 anos), vinha em uso de olmesartana 40 mg e rosuvastatina 10 mg ao dia até 10 dias antes da admissão hospitalar, quando suspendeu a olmesartana pelo receio de que esta droga facilitasse a infecção por SARS- CoV-2. Na manhã de 02/04/2020 cursou com desconforto torácico retroesternal intenso e sensação de dispneia, desencadeados ao esforço menor e que cessaram com o repouso e recorreram em menor intensidade ao longo do dia. Preocupado com a possibilidade de infecção por SARS-CoV-2, isolou-se, monitorou curva térmica e usou paracetamol por conta própria. Não registrou febre. No dia seguinte, houve recorrência da dor torácica, agora com irradiação para ombros, associada à sudorese e dispneia. Devido à sudorese, ficou aindamais preocupado com a possibilidade de SARS-CoV-2 e telefonou para um infectologista que o orientou, caso os sintomas persistissem ou recorressem, a procurar um atendimento de emergência. Ao longo do dia permaneceu isolado e realizando curva térmica. Referiu que “apenas a possibilidade de Coronavírus passava pela cabeça”. Na manhã de 04/04 cursou com piora da dor, sudorese mais intensa e resolveu procurar emergência. Foi triado como possibilidade de síndrome coronariana aguda (SCA), mas não aceitou fazer os exames por não querer ficar no setor onde haviam outros pacientes, saindo à revelia. No caminho de volta à residência, os sintomas intensificaram, sudorese mais profusa e dispneia, mudando o curso do domicílio para nosso hospital, onde apresentou-se com taquicardia sinusal (FC 108 bpm), PA sistólica de 176 mmHg, saturação de O2 98% e temperatura de 36,4 o C. Eletrocardiograma revelou supradesnível de segmento ST em V5, V6, D1, AVL (Figura 1), configurando infarto agudo do miocárdio com supradesnível de ST (IAMcSST). O paciente foi submetido à cineangiocoronariografia e angioplastia primária de artéria descendente anterior em terço médio com um tempo porta-balão de 57 minutos (Figura 2). Ecocardiograma mostrou disfunção sistólica de grau leve, devido à acinesia de toda a região apical e do segmento médio da parede anterior, com fração de ejeção de 45%através doMétodo de Simpson. Pico de troponina I de alta sensibilidade foi de 21.424 ng/L. O paciente evoluiu semcomplicações e obteve alta após 3 dias de internação hospitalar. A Figura 3 mostra a sequência temporal dos fatos até o diagnóstico do IAMcSST. Discussão Com a pandemia de SARS-CoV-2, períodos de quarentena têm sido declarados emdiversas cidades do Brasil e domundo, e indivíduos têm sido orientados a manter o distanciamento social para conter a rápida disseminação do vírus. Omedo extremado de adquirir a infecção pode fazer com que sintomas típicos de uma SCA sejam negligenciados ou atribuídos erroneamente a outras causas menos prováveis, retardando seu tratamento e impondo riscos evitáveis à vida dos pacientes. Relatamos um caso típico de SCA em um paciente com fatores de risco para doença aterosclerótica, que, dirigido pelo pânico da COVID-19, foi incapaz de reconhecer a natureza dos sintomas, adiando sua ida à emergência até o momento em que a dor torácica se tornou intolerável. Adicionalmente, também por receio da infecção pelo SARS-CoV-2, o paciente suspendeu o uso do bloqueador do receptor da angiotensina (BRA). Apesar de um tempo porta-balão de 57 min, em decorrência do prolongado tempo de isquemia, o paciente evoluiu com disfunção sistólica do ventrículo esquerdo, ainda que assintomática. Atraso no reconhecimento e atendimento do infarto agudo do miocárdio O infarto agudo do miocárdio (IAM) é a emergência médica que mais mata no mundo, possui uma incidência de 43 – 144 por 100.000 pessoas/ano e uma mortalidade hospitalar de 4 - 12%. 1 A angioplastia primária, especialmente quando instituído nas primeiras 12 horas de início dos sintomas, é considerado o padrão-ouro de tratamento. 1,2 O tempo porta-balão é indicador Correspondência: Luiz Eduardo Fonteles Ritt • Hospital Cardio Pulmonar - Centro de Estudos Clínicos – Av. Anita Garibaldi, 2199. CEP 40170-130, Ondina, Salvador, BA – Brasil E-mail: luizritt@hotmail.com, lefr@cardiol.br Artigo recebido em 14/04/2020, revisado em 15/04/2020, aceito em 29/04/2020 Palavras-chave Infarto doMiocárdio comSupradesnível de ST, Coronavirus, Pandemia, Pânico, Mêdo, Cineangiografia, Ecocardiografia/ métodos; Fatores de Risco DOI: https://doi.org/10.36660/abc.20200329 1072

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