ABC | Volume 114, Nº6, Junho 2020

Artigo de Revisão Figueiredo Neto et al. Coronavírus e o Miocárdio Arq Bras Cardiol. 2020; 114(6):1051-1057 onipresente em pacientes que necessitam de tratamento intensivo, uma indicação de envolvimento cardíaco, que em muitos casos é um marcador de mau prognóstico, como em muitas outras circunstâncias. 41 Um modelo murino de infecção pulmonar, demonstrada com SARS-CoV-1 também precipitou infecção miocárdica dependente de ECA-2 42-43 . Entre os seres humanos, durante o surto de SARS de Toronto, o RNA do vírus SARS-CoV-1 foi detectado em 35% dos corações autopsiados. 1 Isso aumenta a possibilidade de danos diretos de cardiomiócitos pelo vírus. 44 À luz do receptor de entrada da célula hospedeira compartilhado entre SARS-CoV-1 e SARS-CoV-2, uma entrada miocárdica viral direta e a lesão resultante são plausíveis também com SARS-CoV-2. O SARS-CoV-2 pode compartilhar o mesmo mecanismo com o SARS-CoV-1, porque os dois vírus são altamente homólogos no genoma. 45,46 Temos até o momento apenas um relato de miocardite viral por SARS-CoV-2 comprovada por biópsia com inclusões virais ou DNA viral detectado no tecido do miocárdio. 46 Porem não havia a presença de partículas virais no cardiomiócito, apenas no interior dos macrófagos no interstício cardíaco. Outromecanismo hipotético de lesão viral direta aomiocárdio é através de uma vasculite mediada por infecção. O receptor ECA-2 é altamente expresso em artérias e veias endoteliais. 47 Existem dados patológicos do SARS-CoV-1, mostrando evidências de vasculite com infiltração de monócitos e linfócitos e lesão de células endoteliais no coração. 48 A entrada viral direta nas células endoteliais do miocárdio pode desencadear uma vasculite, ou a presença do vírus pode levar a uma resposta imunológica indireta e consequente reação de hipersensibilidade. 49,50 Esse insulto estaria associado à lesão miocárdica e talvez até à disfunção miocárdica evidente na COVID-19. Embora a ECA-2 seja apenas levemente expressa no cardiomiócito, ela é altamente expressa nos pericitos. A COVID-19 pode atacar pericitos essenciais para a estabilidade endotelial, causando disfunção endotelial, que leva a distúrbios microcirculatórios. Isso explica por que, embora a ECA-2 seja apenas ligeiramente expresso nos cardiomiócitos, COVID-19 pode causar lesão cardíaca. 51 As autópsias mostram infiltrados inflamatórios compostos por macrófagos e, em menor grau, por células T e CD4+. 52,53 Esses infiltrados mononucleares estão associados a regiões de necrose de cardiomiócitos que, pelos critérios de Dallas, definem miocardite. 54 As análises de PCR em tempo real de tecido cardíaco post mortem da epidemia de SARS detectaram o genoma viral em 35% dos pacientes que morreram de SARS. É importante notar que esses corações também apresentaram níveis diminuídos de ECA-2 e aumento da hipertrofia. 44 Observados estes dados em conjunto, ainda não está claro quanto da lesão cardíaca é atribuível à infecção viral direta versus toxicidade indireta pela infecção sistêmica. Além disso, não estão definidas quais populações celulares no miocárdio são mais vulneráveis ​a infecções e/ou inflamação sistêmica. Os níveis de expressão da ECA-2 podem ser importantes, mas novamente as implicações de tais diferenças são discutíveis. Inciardi et al., 55 descrevem uma paciente com COVID-19, que se apresentou com fadiga, aumento da troponina, elevação de peptídeo natriurético tipo B (BNP), alterações eletrocardiográficas, alterações de contração segmentar, derrame pericárdico e disfunção ventricular esquerda ao ecocardiograma com angiotomografia das artérias coronárias normal aproximadamente uma semana após ter apresentado quadro de febre e tosse seca; a ressonância magnética demonstrou acentuado edema intersticial miocárdico biventricular e o padrão de realce tardio do gadolínio sugerindo o diagnóstico de miocardite. A paciente necessitou suporte inotrópico e apresentou melhora clínica e laboratorial a partir de uma semana de tratamento. Hu et al., 56 descreveram um paciente com quadro de dor torácica e dispneia durante três dias, elevação da troponina e BNP; alterações eletrocardiográficas; alterações de contração segmentar; derrame pericárdico e disfunção ventricular esquerda ao ecocardiograma com angiotomografia das artérias coronárias normal. À admissão, apresentava- se hipotenso com quadro sugestivo de miocardite fulminante. Foi tratado com suporte hemodinâmico (drogas vasopressoras e inotrópicas) e metilprednisolona associada à imunoglobulina humana. Após três semanas de tratamento evoluiu com recuperação completa da função ventricular e normalização dos marcadores de lesão miocárdica. Em suma, nos parece clara a associação entre a presença de injúria miocárdica, identificado através da elevação de troponina, e pior prognóstico em pacientes com COVID-19. Em relação ao diagnóstico de miocardite, definido pela elevação de marcadores, associada a quadro clínico sugestivo, com alterações compatíveis em exames de cardioimagem, foram descritos alguns relatos de casos em pacientes com COVID-19, porém sem dados de biopsia comprovando a causa da miocardite. Desta forma, considerando que SARS-CoV-1 e SARS- CoV-2 infectam as células através da ECA-2, proteína de membrana presente em células miocárdicas, é possível que esse mecanismo seja responsável também por miocardite em pacientes com diagnóstico de COVID-19. No entanto, maiores evidências são necessárias para comprovar tal associação. Conclusão O envolvimento miocárdico e pericárdico (derrames/ pericardite) é comum nas fases graves na doença causada pela COVID-19. O acometimento agudo do miocárdio tem sido descrito como uma injúria cardíaca aguda, induzida por uma possível “tempestade de citoquinas inflamatórias”, podendo ou não ocasionar necrose do cardiomiócito. Raros casos de infiltrado inflamatório leve e a presença do vírus nas células inflamatórias do interstício cardíaco e nas células endoteliais da microcirculação coronária foram precisamente descritos, confirmando a real presença histológica de miocardite viral, porém até o momento não se descreveu o coronavírus no interior do cardiomiócito. O estado de resposta adrenérgica e inflamação miocárdica pode explicar a ocorrência do padrão fenotípico de síndrome de takotsubo. 1055

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