ABC | Volume 114, Nº6, Junho 2020

Artigo de Revisão Figueiredo Neto et al. Coronavírus e o Miocárdio Arq Bras Cardiol. 2020; 114(6):1051-1057 contexto de sepse e inflamação, alterando o delicado equilíbrio do sistema de coagulação. 19 Desta forma, a presença de inflamação e da ativação imune presentes na infecção grave por COVID-19 podem determinar CIVD, disfunção microvascular e lesão miocárdica. Resposta inflamatória sistêmica Um dos prováveis mecanismos relacionados à lesão cardíaca em pacientes comCOVID-19 grave envolve a intensa resposta inflamatória sistêmica. Relatos iniciais demonstraram que níveis extremamente elevados de biomarcadores inflamatórios e citocinas, incluindo IL-6, proteína C-reativa , TNF- α , interleucina-2R (IL-2R) e ferritina estiveram associados a manifestações mais graves de COVID-19 e a piores desfechos. 20 Vários estudos já demonstraram que a cardiomiopatia na sepse é parcialmente mediada por citocinas inflamatórias como TNF- α , IL-6, IL-1 β , INF- γ e IL-2. 21,22 Cardiomiócitos de ratos cultivados demonstraram contratilidade reduzida quando expostos a IL-6. Omecanismo pode ser através da modulação da atividade do canal de cálcio com disfunção miocárdica resultante. 23 Alémdisso, acredita-se que o óxido nítrico seja ummediador da depressão do miocárdio em estados de intensa inflamação, como a sepse. 24 Mais recentemente, a observação do papel da disfunção mitocondrial nos estados sépticos levantou questões sobre o papel dessa entidade na cardiomiopatia associada à sepse. 25 Pacientes com as formas mais graves de COVID-19 apresentam disfunção multiorgânica com tempestade de citocinas e desregulação imunológica, sendo estes prováveis mecanismos envolvidos na lesão miocárdica observada nestes pacientes. 26 Cardiomiopatia por estresse O papel da cardiomiopatia por estresse (takotsubo) na lesão cardíaca relacionada à COVID-19 ainda não é bem conhecido, com poucos relatos até o momento. 27-29 No entanto, acredita-se que vários dos mecanismos propostos para lesão cardíaca relacionada à COVID-19, detalhados nesta revisão, estejam implicados na fisiopatologia da cardiomiopatia por estresse, particularmente os de disfunção microvascular, tempestade de citocinas e aumento simpático. 30 O intenso estresse emocional e as infecções respiratórias causadas pela COVID-19 podem representar potenciais gatilhos nesse contexto. É possível que cardiomiopatia por estresse também possa desempenhar um papel significativo na pandemia da COVID-19. Síndrome coronariana aguda não obstrutiva Pacientes com COVID-19 podem apresentar sinais e sintomas clássicos para SCA, tais como dor torácica, alterações eletrocardiográficas sugestivas de isquemia miocárdica ou infarto agudo do miocárdio, tornando difícil este diagnostico diferencial. 31 Os dados publicados até agora não explicitam a incidência de SCA por ruptura da placa epicárdica, como mecanismo para a lesão cardíaca observada na COVID-19. Contudo, já existe um conhecimento adquirido, que demonstra a associação entre infecção e um risco elevado de SCA. Estudos epidemiológicos demonstraram que a hospitalização por pneumonia está associada a um maior risco de eventos ateroscleróticos. 32 Estudos avaliando a infecção por influenza demonstraram associação temporal entre complicações cardiovasculares e SCA, e a vacinação anual contra influenza esteve associada à redução de 36% de eventos cardiovasculares adversos maiores, em metanálise de ensaios clínicos que avaliaram essa questão. 33,34 Desta forma, a infecção viral está associada a um risco aumentado de eventos coronarianos e a prevenção está associada com uma redução desse risco. Portanto, é plausível que a SCA também seja uma causa importante de lesão cardíaca aguda em pacientes com COVID-19. Existem vários possíveis mecanismos fisiopatológicos, pelos quais a infecção viral sistêmica (por influenza ou SARS-CoV-2, por exemplo) pode levar a um maior risco de desestabilização da placa e SCA. Entre eles, o papel da inflamação no desenvolvimento e progressão da aterosclerose está bem estabelecido. 35-38  A resposta imune à infecção viral aguda e o aumento concomitante de citocinas e mediadores inflamatórios presentes na COVID-19 podem levar à inflamação arterial localizada, que pode ser mais pronunciada nas placas coronárias. 39 A entrada de produtos virais na circulação sistêmica, também conhecidos como padrões moleculares associados a patógenos (PMAP), pode causar a ativação inata do receptor imune, levando à ativação de células imunes residentes em ateroma preexistente, podendo determinar ruptura da placa; além do fato de que os PMAP virais podem ativar o inflamassoma, promovendo a conversão de pró-citocinas nas citocinas biologicamente ativas. 40,41 Por fim, a disfunção endotelial decorrente da infecção e inflamação pode determinar vasoconstricção, com diminuição do fluxo coronariano. 42 Todas estas alterações fisiopatológicas presentes na COVID-19 podem determinar à desestabilização de placa aterosclerótica pré-existente deflagrando um evento coronariano agudo. Lesão miocárdica viral direta Relatos de casos de miocardite na COVID-19 fornecem evidências de inflamação cardíaca, mas não determinam o mecanismo. Um dos mecanismos propostos para a lesão miocárdica observada na COVID-19 seria a infecção viral direta do coração, com miocardite resultante. De fato, o miocárdio humano expressa o receptor utilizado pela COVID-19 para infectar as células hospedeiras, a ECA- 2.  Assim, sem dúvida, em alguns casos, uma miocardite viral devido a esse agente pode ocorrer. No entanto, o aumento da troponina parece quase 1054

RkJQdWJsaXNoZXIy MjM4Mjg=