ABC | Volume 114, Nº6, Junho 2020

Editorial Bittencourt Por que desenvolvemos modelos Arq Bras Cardiol. 2020; 114(6):992-994 Em outras situações, pode-se até considerar que o modelo não seja mais útil e toda a abordagem deva ser diferente. Por exemplo, pode-se dizer que um infradesnivelamento do segmento ST de 1 mm em repouso configuraria alto risco independente de outras características clínicas. Nesse caso, o paciente teria sido encaminhado para cineangiocoronariografia invasiva durante a primeira internação e poderia não ter apresentado o IAM subsequente. Finalmente, se o paciente tivesse realizado a cineangiocoronariografia antes de apresentar instabilização, ele poderia ter sido adequadamente tratado com aspirina, estatinas, betabloqueadores e outras medicações. Nesse cenário, esse paciente poderia ter vivido mais 10 anos sem qualquer outra complicação cardiovascular. Nesse caso, consideraríamos o seu FRS inicial como certo ou errado? Os modelos não devem ser avaliados tardiamente para serem julgados como certos ou errados. A questão correta é se o modelo foi adequadamente desenhado para a situação em que está sendo utilizado, se o resultado que pretende prever é de interesse e se as informações fornecidas são incrementais ao que é conhecido no momento em que o modelo é utilizado. Quando tais premissas são atendidas, os modelos podem levar a decisões mais bem informadas que podem ter impacto significativo. No caso acima, o uso adequado do escore ASCVD na apresentação inicial ou uma interpretação diferente do infradesnivelamento do segmento ST poderia ter levado a mudanças no tratamento que poderiam alterar completamente a história da doença desse paciente. Embora os cardiologistas clínicos mais experientes não se surpreendam com tais peculiaridades da modelagem da predição de risco, elas nem sempre são bem compreendidas pelo público leigo. Um problema semelhante é agora observado com destaque dado aos modelos epidemiológicos para a previsão do surto de COVID-19. Um modelo inicial publicado pelo Imperial College London sugeriu que o surto poderia ter grande impacto em todo o mundo, 5 com mortes relacionadas à COVID-10 atingindo milhões nos Estados Unidos e no Reino Unido. O modelo também estimou o impacto de possíveis intervenções para controlar o surto que poderiam levar a uma redução colossal nas mortes. Outros modelos se seguiram, com números muito mais baixos, às vezes com ordens de magnitude inferiores aos cenários anteriores. Isso levou diversas vozes da comunidade científica, imprensa leiga e público em geral a fazer críticas incisivas contra esses modelos iniciais. A maior parte delas usando dados atuais ou projeções mais novas para ilustrar o quão “errado” o modelo inicial estava. O desenvolvimento de modelos epidemiológicos para a COVID-19 tem pouca semelhança com os modelos mais simples utilizados para a previsão de risco em cardiologia, mas ambos utilizam dados atuais e prévios para projetar um cenário futuro e tentar estimar o valor das intervenções para reduzir o risco de desfechos negativos. No entanto, devido ao tempo limitado desde que a COVID-19 foi descoberta, vários parâmetros relacionados ao comportamento do vírus são estimados com base em dados preliminares bastante restritos. Às vezes, quando não há dados disponíveis, os parâmetros são apenas estimativas imprecisas baseadas em outras doenças ou condições semelhantes mais conhecidas. Além disso, esses modelos dependem da transmissão viral, um processo complexo que pode envolver parâmetros difíceis de estimar, como o número médio de interações sociais que cada indivíduo tem ou a densidade demográfica em cada área. Algumas dessas informações não estão facilmente disponíveis, e mais uma vez uma estimativa imprecisa pode ser utilizada pelos pesquisadores. Um exemplo é o uso de dados do Peru em um dos modelos do ICL para o cenário brasileiro para uma variável em que dados locais não estavam disponíveis para o Brasil. Com variáveis tão limitadas, não surpreende que tais modelos tenham grande variabilidade. No entanto, isso é apenas uma parte da questão ao interpretar modelos após surto. Embora mudanças específicas nas intervenções possam ser consideradas no modelo, é impossível “prever” como o governo ou a população se comportarão no futuro, assim como não se pode prever se o paciente começará a fumar quando o risco cardiovascular é inicialmente calculado, como no caso inicial. Mesmo que o distanciamento fisico seja considerado no modelo, seu verdadeiro impacto depende do quanto a população segue tais medidas. Por exemplo, embora medidas rigorosas para aumentar o distanciamento social tenham sido propostas para a cidade de São Paulo, o governo reconhece que elas não alcançaram mais da metade do efeito esperado. Logo, sabe-se que seu impacto também será menor. No entanto, mesmo que os modelos sejam bem sucedidos, eles podem ser interpretados como incorretos no futuro. Por exemplo, o modelo supracitado do ICL apresentou um cenário tão catastrófico que levou a mudanças em políticas públicas substanciais em todo o mundo. Se essas mudanças levarem a uma redução da taxa de mortalidade devido a sua implementação precoce e eficaz, tal redução nas mortes poderia levar a afirmações de que o modelo estava “errado” pois tinha estimado muito mais mortes. Outro aspecto importante dos modelos durante uma epidemia como a COVID-19 é que quanto mais cedo eles são criados, menos informações estão disponíveis, levando a um modelo menos preciso. No entanto, quanto mais cedo o modelo for desenvolvido, maior será o impacto das intervenções derivadas dele. Em um mundo de informações perfeitas, a COVID-19 poderia ter sido extinta se as informações que temos atualmente sobre a doença estivessem disponíveis quando o primeiro caso foi diagnosticado e ele e seus contatos tivessem sido isolados desde o princípio. Por outro lado, o conhecimento perfeito de todos os detalhes da transmissão e propagação viral seriam de pouco impacto social depois que o surto terminasse. Assim, resta-nos conviver com as incertezas e imprecisões derivadas dos modelos e esperamos que tais modelos apareçam em tempo de orientar intervenções políticas eficazes. Assim, para termos modelos bem sucedidos, precisamos aceitar, entender e reconhecer tais limitações. Além disso, precisamos ser humildes para ajustar as velas às condições 993

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