ABC | Volume 114, Nº6, Junho 2020

Editorial Por que Desenvolvemos Modelos – Da Prática Clínica de Cardiologia a Epidemias de Doenças Infecciosas Why We Build Models – From Clinical Cardiology Practice to Infectious Disease Epidemics Marcio Sommer Bittencourt 1,2, 3 Centro de Medicina Preventiva, Hospital Israelita Albert Einstein e Faculdade Israelita de Ciência da Saúde Albert Einstein, 1 São Paulo, SP - Brasil Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica, Hospital Universitário, Universidade de São Paulo, 2 São Paulo, SP - Brasil Diagnósticos da América (DASA), 3 São Paulo, SP - Brasil Correspondência: Marcio Sommer Bittencourt • Av. Lineu Prestes, 2565. CEP 05508-000, São Paulo, SP - Brasil E-mail: msbittencourt@mail.harvard.edu Palavras-chave Doenças Cardiovasculares; Biomarcadores; Fatores de Risco; Medição de Risco; Comportamento de Redução de Risco; Prevenção e Controle; Coronavirus; COVID-19; Pandemia. Francisco, 64 anos, vem ao seu consultório para uma avaliação preventiva. Ele tem um histórico de hipertensão bem controlada e não tem nenhuma queixa. Não tem outras comorbidades ou doenças prévias. Não há histórico familiar de doença cardiovascular ou tabagismo e LDL- colesterol (LDL-C) é de 90 mg/dL. Depois de discutir com o paciente, você não tem certeza se o perfil de benefício de risco desse paciente justificaria uso de estatina. Em vez de confiar em sua sensação subjetiva, você decide usar o escore de risco de Framingham (FRS) para definir o uso de estatina. 1 Como o risco calculado pelo FRS foi de 8,1%, você decide não iniciar estatina neste momento. Um mês depois, Francisco retorna com angina típica aos grandes esforços, mas sem sinais de instabilidade. Mais uma vez para evitar excesso de confiança apenas em sua impressão inicial, você decide usar a escala de predição de dor torácica Diamond e Forrester (DF), que estima a probabilidade pré-teste de doença arterial coronariana obstrutiva (DAC). 2 Para um homem na idade dele, a regra sugere uma probabilidade pré-teste de 94% (alta probabilidade) e você decide solicitar uma cineangiocoronariografia invasiva. Antes de realizar o exame, Francisco apresenta piora da dor torácica mesmo em repouso. O paciente procura o pronto-socorro. A dosagem de troponinas está normal e o ECG em repouso tem infradesinvelamento do segmento ST de 1 mm nas derivações anteriores. O escore de risco de TIMI é de 1, indicando baixo risco. 3 O paciente é internado por 48 horas, passa por um teste de esteira negativo limitado pela baixa capacidade física, mas recebe alta para casa com a medicação apropriada. Uma semana depois, ele retorna ao hospital com infarto do miocárdio com supra de ST. Ele é levado para a angioplastia primária de lesão grave em terço médio de artéria coronária média direita. Depois de três dias no hospital, ele tem alta. Os escores de FRS, DF ou TIMI foram corretos ou incorretos na estratificação de risco? Eles conseguiram prever o que aconteceu com o paciente? O FRS estratificou o paciente como baixo risco, <10% de risco de um evento cardiovascular maior em 10 anos. O DF sugeriu presença quase certa de DAC obstrutiva, enquanto o escore de risco de TIMI sugeriu baixo (5%) risco de morte, infarto agudo do miocárdio (IAM) recorrente ou isquemia grave em duas semanas. No entanto, o paciente apresentou IAM menos de uma semana depois. Os cardiologistas são acostumados a utilizar escores de risco derivados de modelos de predição. Os modelos são simplificações da vida real, o que os torna mais generalizáveis para uma população mais ampla e externamente válidos para outros indivíduos além da coorte inicial de pacientes onde os escores foram desenvolvidos. Esses modelos selecionam um número limitado de variáveis consideradas de maior importância para prever o desfecho desejado. No entanto, várias premissas são feitas para cada variável e para a população a que se aplicam. Se tais suposições mudarem, o modelo pode não ser mais válido ou pode precisar ser recalculado ou recalibrado para se adequar ao novo ambiente. Por exemplo, o FRS considera apenas as condições de fumante ou não fumante. Assim, ex-fumantes são considerados de risco semelhante aos não fumantes, enquanto indivíduos que fumam dois cigarros por dia são considerados de risco semelhante aos que fumam três maços por dia. Esses aspectos podem levar a imprecisão na estimativa individual de risco. No entanto, eles podem ter implicações muito maiores quando tais mudanças no valor de cada variável ocorrem em nível populacional. Por exemplo, quando o FRS foi derivado, o fumante médio fumava de um a dois maços por dia. Atualmente, a maioria dos fumantes fuma menos de um quarto disso. Assim, a aplicação da versão antiga do FRS na atualidade pode resultar em uma estimativa de risco incorreta. Essas dificuldades no uso de modelos de predição são conhecidas pelo cardiologista. Inclusive, a maioria dos escores são eventualmente atualizados para aumentar a precisão com o uso de variáveis novas ou recalibradas. Usando o exemplo de caso acima, pode-se sugerir o escore americano de doença cardiovascular aterosclerótica ( atherosclerotic cardiovascular disease — ASCVD) em vez do FRS. Utilizando o escore ASCVD, o risco de eventos cardiovasculares maiores em 10 anos seria de 10,6% e, de acordo com as novas diretrizes, seria recomendado o uso de estatina para reduzir o risco cardiovascular desse paciente. 4 Espera-se que esse modelo atualizado seja mais preciso para predizer risco. DOI: https://doi.org/10.36660/abc.20200527 992

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