ABC | Volume 114, Nº4, Suplemento, Abril 2020

Relato de Caso Glicogenose Tipo I (Doença de Von Gierke): Relato de Dois Casos com Grave Dislipidemia Glycogen Storage Disease Type I (Von Gierke disease): Report of Two Cases with Severe Dyslipidemia Julia Maria Avelino Ballavenuto, 1 J éssica D´Ório Dantas de Oliveira, 1 Renato Jorge Alves 1 Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, 1 São Paulo, SP - Brasil Introdução São denominadas glicogenoses as afecções decorrentes do erro do metabolismo hereditário, com consequente anormalidade na concentração e/ou na estrutura do glicogênio em qualquer tecido do organismo. Atualmente, existem 14 tipos de doenças do armazenamento de glicogênio, que são classificados de acordo com a deficiência enzimática ou transportadora e a distribuição desses defeitos em diferentes órgãos. 1 Em 1929, Edgar von Gierke descreveu aumento da concentração de glicogênio em tecidos de autópsias de jovens com manifestações hemorrágicas. Já em 1952, Gerty & Cori analisaram biópsias hepáticas de pacientes com sintomas semelhantes, com a constatação de ausência parcial ou total da enzima glicose-6-fosfatase (G6Pase) – denominando então a Doença de von Gierke. Nordlie et al., em estudos durante a década de 1970, também a partir de biópsias hepáticas, observaram níveis normais da enzima G6Pase, porém com sua atividade diminuída. 2 Dessa forma, a glicogenose tipo I é caracterizada pela deficiência da G6Pase, enzima-chave no metabolismo do glicogênio, o que leva à redução na glicogenólise e gliconeogênese e, consequentemente, ao acúmulo hepático de glicose-6-fosfato (G6P). 2 A G6Pase é composta por uma unidade catalítica e por três translocases. Podemos ainda agrupar a glicogenose tipo I em subtipos, de acordo com qual sítio enzimático é deficiente: subtipo Ia (G6P-Ia), que corresponde à deficiência na unidade catalítica; subtipos Ib, Ic e Id, que se referem à deficiência das translocases 1, 2 e 3, respectivamente. Também foi demonstrada deficiência da subunidade catalítica SP, caracterizando, assim, o subtipo IaSP. O diagnóstico dos subtipos é confirmado por biópsia hepática, com determinação da atividade da enzima G6Pase na amostra. 2 O subtipo Ia possui caráter autossômico recessivo, representando cerca de 80% dos pacientes com deficiência na atividade da G6Pase tipo I, com prevalência de 1:100.000 na população mundial. 3 Manifesta-se, geralmente, a partir dos 3 a 4 meses de idade, com consequente acúmulo anormal de glicogênio em fígado, rins e intestino, manifestando-se principalmente com hipoglicemia, hiperuricemia, acidose lática e dislipidemia grave. A hipoglicemia geralmente se manifesta na emergência por tremores, convulsões, cianose e apneia e, a longo prazo, pode cursar com retardo no crescimento. No exame físico nota-se hepatomegalia não dolorosa com fígado de bordas lisas palpável abaixo do rebordo costal direito, abdome de aspecto globoso por deposição de gordura abdominal, muitas vezes em um indivíduo de baixa estatura e com fáscies de boneca. 3 Como complicações tardias, esses pacientes podem apresentar aumento do tamanho renal (com ou sem piora da função renal), adenomas hepáticos (com transformação rara em hepatocarcinoma) e neutropenia (tendências a infecções de repetição). 3-5 A hipertrigliceridemia, mais proeminente no subtipo G6P- Ia, se relaciona à maior morbidade a longo prazo, tendo em vista sua associação com pancreatite e adenomas hepáticos. 6 Até o início dos anos 2000, eram utilizados rotineiramente estudos enzimáticos efetuados em biópsias de tecido hepático. Atualmente, o diagnóstico é feito com base na análise de mutações nos genes da G6Pase (Glicose-6-fosfatase) e do G6PT (trocador da glicose-6-fosfato/fosfato) por PCR-RFLP (técnica do polimorfismo de comprimento de fragmento), ou por sequenciação direta do gene, associada a manifestações clínicas e laboratoriais. Os estudos enzimáticos ficam reservados aos casos inconclusivos. 7 Pacientes com transtornos G6P podem apresentar critérios para síndrome metabólica, principalmente hipertrigliceridemia, 8 níveis baixos de lipoproteínas de alta densidade (HDL) e aumento da circunferência abdominal. Nesse contexto, um monitoramento de doenças cardiovasculares em adultos com G6P seria justificado. Ainda podemos ter pacientes com hipertensão arterial sistêmica (HAS), em menor proporção, geralmente relacionada a alterações renais, que podem surgir a partir da segunda década de vida. Glomeruloesclerose segmentar-focal, nefropatia por gota e nefrocalcinose são as possíveis etiologias da lesão renal. A proteinúria é um achado frequente. No entanto, as alterações renais apresentam boa resposta ao tratamento dietético, justificando o fato de as alterações renais não serem frequentes. 2 Relatamos duas pacientes com doença do armazenamento, G6P-Ia, associada a dislipidemia grave e de difícil controle, irmãs e filhas de pais consanguíneos (primos de 1º grau), com pai falecido e mãe com tireoidite de Hashimoto, sem relato de outras comorbidades. Correspondência: Julia Maria Avelino Ballavenuto • Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo - Rua Dr. Cesário Mota Junior, 112. CEP 01009-972, Vila Buarque, Sã Paulo, SP – Brasil E-mail: ballavenuto@gmail.com Artigo recebido em 16/01/2019, revisado em 03/04/2019, aceito em 10/04/2019 Palavras-chave Doença de Depósito de Glicogênio Tipo 1/complicações; Gluconeogênese; Dislipidemias; Hepatomegalia; Hipoglicemia; Glucose-6-Fosfatase. DOI: https://doi.org/10.36660/abc.20190037 23

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