ABC | Volume 114, Nº4, Abril 2020

Artigo Original Carrion et al. Disfunção ventricular direita e transplante cardíaco Arq Bras Cardiol. 2020; 114(4):638-644 Introdução Ao longo das últimas cinco décadas, o transplante cardíaco (TC) tem se estabelecido como uma opção terapêutica para pacientes com insuficiência cardíaca em estágio terminal. 1,2 Os aprimoramentos das técnicas cirúrgicas, da seleção dos pacientes, dos medicamentos imunossupressores e dos protocolos pós-TC têm contribuído para o sucesso dessa terapia, e têm aumentado a sobrevida dos pacientes. 2-5 O acompanhamento pós-TC foca-se na triagem ativa para complicações. A biópsia endomiocárdica periódica pode diagnosticar a maioria dos casos de rejeição celular aguda (RCA), nos quais os pacientes são, em sua maioria, assintomáticos e a fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) permanece normal. 2,6 Porém, a biópsia endomiocárdica é um procedimento invasivo e dispendioso, com complicações potencialmente graves. 2,7-9 Por este motivo, a busca por outros métodos que possam ser usados na triagem para rejeição está se tornando cada vez mais importante. Alguns estudos sobre novas técnicas ecocardiográficas, como ecocardiografia speckle tracking bidimensional (2D STE), têm demonstrado que a redução de strain longitudinal global (SLG) do ventrículo esquerdo (VE) está associada à rejeição do enxerto, e pode ser utilizada para detectar disfunção miocárdica subclínica precoce. Porém, não há consenso na literatura em relação à aplicabilidade clínica da avaliação do SLG neste cenário. 2-6,10 Além disso, pouco se sabe sobre o SLG do ventrículo direito (VD) e o seu papel potencial na rejeição, fato que destaca as lacunas de pesquisa nesta área. 10-12 Na busca de expandir o conhecimento atual sobre disfunção miocárdica precoce e rejeição do enxerto, o presente estudo foi desenhado para avaliar se alterações no strain miocárdico por speckle tracking estão associados à RCA. Especificamente, nós visamos avaliar se reduções no SLG VE e no SLG VD estão associadas à rejeição cardíaca do enxerto. Métodos População do estudo Foram incluídos nesta análise todos os pacientes adultos (idade > 18 anos) que foram submetidos a TC no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, entre 2015 e 2016. Durante o período, os pacientes receberam monitoramento de rotina de acordo com o protocolo hospitalar, e seus dados foram analisados durante os primeiros 18 meses de acompanhamento pós-TC. Dos 20 pacientes que receberam transplantes (todos pela técnica bicaval), 19 foram incluídos nesta análise, e 1 paciente, que morreu antes da primeira biópsia endomiocárdica devido à rejeição hiperaguda do enxerto, foi excluído. O protocolo institucional de acompanhamento padrão, que serviu de guia para este estudo, consistia-se de biópsias semanais durante o primeiro mês pós-TC; biópsias quinzenais durante o segundo e o terceiro mês pós-TC; biópsias mensais do quarto ao sexto mês pós-TC; e biópsias subsequentes a cada 3 a 4 meses até completar 18 meses de acompanhamento. Cada biópsia foi seguida por ecocardiografia, buscando detectar complicações pós-biópsias. Das 257 biópsias realizadas até julho 2017, 170 tinham ecocardiogramas com imagens adequadas para análise de strain pelo método de speckle tracking e foram, portanto, incluídas neste estudo (Figura 1). Foram realizadas comparações entre pares de biópsia/ecocardiograma com evidência de rejeição ausente (0R) ou leve (1R) (n = 130 e n = 25, respectivamente) e com episódios de rejeição moderada (2R) (n = 15). O presente estudo foi realizado em acordo com os princípios estabelecidos pela Declaração de Helsinki, e seu protocolo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa institucional. Análise ecocardiográfica Todos os ecocardiogramas foram analisados offline em uma estação de trabalho TOMTEC (TomTec Imaging Systems, Unterschleißheim, Alemanha) por um ecocardiografista experiente (LJBMC), cego aos dados clínicos e às biópsias correspondentes. As medidas foram obtidas de acordo com os padrões da Sociedade Americana de Ecocardiografia (ASE, sigla em inglês), incluindo espessuras das paredes septal e posterior; diâmetros do VE, VD, aorta, e átrio esquerdo; fluxo transmitral; velocidades de relaxamento anular mitral e tricúspide; e excursão anular tricúspide. Foram realizadas as medidas ecocardiográficas da função VD utilizando o corte apical de 4 câmaras. A excursão sistólica do plano anular tricúspide (TAPSE) foi medida como o movimento longitudinal do anel tricúspide da diástole final à sístole final, utilizando o modo M. A velocidade da onda sistólica do anel lateral tricúspide derivada do Doppler tecidual (onda S) foi obtida alinhando o segmento basal e o anel tricúspide com o cursor Doppler. A variação fracional da área (VFA) do VD foi avaliada pelo traçado manual das áreas do VD, conforme o seguinte: (área diastólica final do VD − área sistólica final do VD)/área diastólica final do VD × 100. A análise da deformação miocárdica (SLG) foi realizada utilizando software específico (2D CPA TTA2.20.01, TomTec) de speckle tracking no modo B para o VE e o VD. Este software suplanta a dependência do ângulo de aquisição da imagem e identifica movimento cardíaco rastreando múltiplos pontos de referência ao longo do tempo. No final da sístole, conforme definido por ECG, foram estabelecidos três marcos na borda endocárdica (dois basais e um apical), com detecção automática de speckles pela borda endocárdica da cavidade especificada (VE ou VD). Foram realizados ajustes manuais quando necessário. No VE, o strain sistólico de pico para cada corte apical bidimensional (de 2, 3, e 4 câmaras) foi obtido a partir da média dos 6 segmentos traçados, enquanto o SLG VE foi obtido a partir da média do strain sistólico de pico dos cortes apicais. No VD, o SLG VD foi definido como o strain sistólico de pico combinando a parede livre e o septo (Figura 2). Todos os pacientes estavam em ritmo sinusal, e foi analisado um único ciclo cardíaco. Foram excluídas as imagens nas quais a má qualidade impedia análise de speckles em 2 ou mais segmentos consecutivos, imagens abrangendo menos de 1 ciclo cardíaco completo e cortes excessivamente tangenciais. Foram utilizados os volumes sistólicos e diastólicos finais do VE e do VD para derivar outras medidas de função miocárdica, como FEVE (pelo método de Simpson modificado) e VFA do VD. 639

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