ABC | Volume 114, Nº1, Janeiro 2020

Artigo Original Alegre et al. Açaí e isquemia-reperfusão miocárdica em ratos Arq Bras Cardiol. 2020; 114(1):78-86 Introdução Embora a mortalidade atribuída à cardiopatia isquêmica esteja diminuindo em alguns países, ela ainda apresenta alta morbidade, diminuindo a qualidade de vida e aumentando os gastos em saúde. 1 Os eventos isquêmicos cardíacos podem ser causados por isquemia parcial ou total do tecido, com disfunção miocárdica reversível ou irreversível e morte celular. Períodos isquêmicos superiores a 20 minutos causam danos irreversíveis aos cardiomiócitos e incapacidade de recuperação funcional, mesmo com a restauração do fluxo sanguíneo. 2,3 Durante a isquemia, para atender à demanda energética do miocárdio, o ATP celular é gerado pela glicólise, levando à redução do pH intracelular. 1,4 Paralelamente, níveis reduzidos de ATP interrompem importantes bombas ativas na homeostase iônica, o que resulta em sobrecarga de Na + e Ca 2+ citosólico, inviabilizando a repolarização celular e levando à disfunção miocárdica. Além disso, é possível observar níveis elevados de Ca 2+ no citosol que pode ativar diversas enzimas (fosfolipases, proteases, endonucleases e ATPases) associadas à peroxidação lipídica, à produção de espécies reativas de oxigênio (ERO), à disfunção de proteínas contráteis e à perda da função celular. 4 Embora seja necessário reverter a isquemia, a restauração do fluxo sanguíneo pode ser mais prejudicial do que o próprio processo isquêmico. 1,4,5 Durante a reperfusão, os danos isquêmicos são agravados devido a uma descarga adicional de ERO gerada nas mitocôndrias pela restauração do fluxo de oxigênio. 5,6 Tem ganhado atenção a pesquisa de drogas e substâncias que possam prevenir danos às células cardíacas em situações e procedimentos que envolvem lesão por reperfusão. 7 Nesse contexto, observamos grande interesse na ação antioxidante de produtos naturais como o açaí. 8 O açaí (Euterpe oleracea Mart.) é uma fruta típica do norte do Brasil recentemente popularizada por sua alta capacidade antioxidante relacionada à presença de ácidos fenólicos, flavonoides e antocianinas. 9-12 Os compostos de polpa de açaí consistem em 31% de flavonoides, 23% de compostos fenólicos, 11% de lignoides e 9% de antocianinas. 13 As principais antocianinas na polpa do açaí são a cianidina‑3‑O‑glucosídeo e a cianidina-3-O-rutinosídeo, responsáveis pela cor púrpura da fruta. 13 Os compostos fenólicos mais abundantes são o ácido ferúlico, os ácidos p-hidroxibenzóico, gálico, protocatecúico, elágico, vanílico, p-coumarico e o glicosídeo do ácido elágico. 13,14 Em modelos experimentais, a suplementação de açaí reduziu o estresse oxidativo pulmonar 9 e cerebral, 15 reduziu a formação de ERO em células polimorfonucleares, 11,16 diminuiu o dano ao DNA e apresentou atividade anticarcinogênica no câncer de bexiga. 10 A administração oral de açaí foi capaz de atenuar quadros de hipertrofia e disfunção do ventrículo esquerdo em ratos submetidos a infarto do miocárdio, 17 mas não foram encontrados estudos sobre o efeito do açaí no modelo global de isquemia ou seu efeito na lesão de reperfusão. O objetivo do nosso estudo foi avaliar a área de infarto, a função do ventrículo esquerdo, o estresse oxidativo e a atividade de enzimas envolvidas no metabolismo energético do miocárdio no modelo global de isquemia-reperfusão em ratos após suplementação de açaí. Método Desenho do estudo O protocolo experimental deste estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética emUso de Animais da Faculdade de Medicina de Botucatu (CEUA 1111/2014), e está em conformidade com as normas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal. Vinte ratos Wistar machos com 2 meses de idade, pesando 250-300 g, foram divididos em dois grupos: controle (C; n = 10) e açaí (A; n = 10). O tamanho da amostra foi determinado por conveniência com base em estudos anteriores que utilizaram o mesmo modelo experimental. Os animais foram mantidos em ambiente com temperatura controlada (23°C) e ciclo claro-escuro de 12 horas em caixas individuais para controlar a ingestão de alimentos. O grupo C recebeu ração padrão e o grupo A foi suplementado com 5% de açaí 18 por seis semanas. Após o período de suplementação, todos os animais foram anestesiados com tiopental de sódio (80 mg/kg, IP) para induzir o protocolo de isquemia global‑reperfusão, após o qual o coração foi dissecado. Foi feito um corte seccional do ventrículo esquerdo para determinar a área de infarto e o restante foi armazenado em um freezer a -80°C para análise posterior. Um rato do grupo controle foi perdido devido a problemas técnicos durante o protocolo de isquemia-reperfusão e o estudo foi concluído com 9 ratos no grupo controle e 10 ratos no grupo açaí. Preparação da ração suplementada com açaí A polpa de açaí comercializada (Icefruit®) foi descongelada e incorporada na ração Nuvilab triturada (Nuvital®). Após a homogeneização, a ração foi novamente peletizada, seca a 32°C e armazenada em freezer a -20°C até o momento do uso. A dose utilizada no estudo foi de 5%, conforme proposto por Fragoso et al. 18 Indução de isquemia global, reperfusão e avaliação da função cardíaca Os ratos foramanestesiados comtiopental de sódio (80mg/kg, IP), heparinizados (2.000 UI, IP) e submetidos a ventilação com pressão positiva comoxigênio a 100%. Em seguida, foi realizada esternotomia mediana e a aorta ascendente foi canulada para iniciar a perfusão retrógrada com solução de Krebs‑Henseleit modificada (NaCl 115 mmol/L, KCl 5,4 mmol/L, CaCl 2 1,25 mmol/L; MgSO 4 1,2 mmol/L, NaH 2 PO 4 1,15 mmol/L, NaHCO 3 25 mmol/L, 11 mmol/L de glicose e 8 mmol/L de manitol). Os corações foram transferidos para aparato de Langendorff (Modelo 830 Hugo Sachs Eletronik, Alemanha) com pressão de perfusão a 75 mmHg. A solução nutritiva foi constantemente oxigenada com uma mistura gasosa de 95% de O 2 e 5% de CO 2 , e a temperatura foi mantida a 37°C. Ummarcapasso foi utilizado para manter a frequência cardíaca sob controle (250 bpm). O átrio esquerdo foi removido e um balão de látex foi inserido na cavidade ventricular esquerda. Obalão foi acoplado a um transdutor de pressão e a uma seringa, o que permitiu variação no volume do balão. Após 10minutos de estabilização, 79

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