ABC | Volume 113, Nº6, Dezembro 2019

Minieditorial Impacto do Implante da Válvula Aórtica Transcateter na Função Renal: A Interação “Renovalvular” na Estenose Aórtica Impact of Transcatheter Aortic Valve Implantation on Kidney Function: the “Renovalvular” Interaction in Aortic Stenosis Antonio de Santi s Universidade de São Paulo Instituto do Coração - Unidade Clinica de Valvopatia, São Paulo, SP – Brasil Minieditorial referente ao artigo: Impacto do Implante Percutâneo de Válvula Aórtica na Função Renal Correspondência: Antonio de Santis • Av. Dr. Eneas Carvalho de Aguiar, 44. CEP 05403-000, São Paulo, SP – Brasil E-mail: antonio.slopes@einstein.br Palavras-chave Insuficiência Cardíaca/complicações; Insuficiência Renal/ complicações; Estenose da Valva Aórtica/complicações; Substituição da Valva Aórtica Transcateter/tendências, Medição de Risco. DOI: https://doi.org/10.36660/abc.20190753 O advento da congestão renal na insuficiência cardíaca foi descrito pela primeira vez por Frédéric Justin Collet (1870‑1966), um patologista francês que descobriu a noção de congestão renal passiva relacionada à disfunção cardíaca, criando o termo revelador " rein cardiaque " no início de 1900. 1 O termo ‘síndrome cardiorrenal’ surgiu em uma conferência do National Heart, Lung, and Blood Institute Working Group de 2004, avaliando as complexas interações entre coração e rim. 2 Os principais mecanismos fisiopatológicos relacionados a essa condição são o aumento das pressões venosas centrais e intra-abdominais; débito cardíaco e índice cardíaco reduzidos; desregulação neuro-hormonal; estresse oxidativo e mediadores inflamatórios. 3 A estenose aórtica (EA) degenerativa representa uma das doenças cardíacas valvaresmais prevalentes e uma causa importante de insuficiência cardíaca, tendo forte correlação com o processo do envelhecimento. A combinação de aterosclerose, biomineralização e estresse oxidativo leva à deposição de cálcio nos folhetos valvares. 4 A interação “renovalvular” na EA pode representar um caminho de mão dupla, de uma perspectiva fisiopatológica. Por um lado, a EA pode prejudicar a função renal pela hipoperfusão arterial e congestão venosa sistêmica. Por outro lado, a doença renal crônica (DRC) também é um importante fator de risco para EA, devido à calcificaçãomaciça e agressiva dos folhetos, imposta principalmente por desequilíbrios na homeostase do cálcio e fósforo. 5 Para pacientes com EA submetidos à substituição da válvula aórtica (SVA) cirúrgica convencional, há um aumento nas taxas de complicações, como sangramento maior e reoperação, em comparação com pacientes com função renal moderadamente reduzida (taxa de filtração glomerular estimada [TFGe] entre 30-60 mL/min/1,73 m 2 ) versus aqueles sem doença renal. 6 A mortalidade após a SVA cirúrgica também aumenta com o agravamento da TFG. 7 O desenvolvimento da substituição da válvula aórtica transcateter (TAVR, sigla do inglês transcatheter aortic valve replacement ) para o tratamento da EA trouxe esperança para um grupo de pacientes sem perspectiva terapêutica efetiva devido ao seu perfil clínico, caracterizado pela presença de fragilidade clínica e múltiplas comorbidades, impossibilitando a SVA cirúrgica. 8 Nesse cenário, a TAVR representa uma alternativa terapêutica potencialmente menos invasiva para pacientes com EA e DRC. Alguns estudos anteriores avaliaram o impacto clínico da TAVR em pacientes comDRC. No clássico estudo PARTNER, houve uma mortalidade de 34,4% em 1 ano para pacientes comDRC grave. 9 Para pacientes em tratamento dialítico e TAVR, também houve uma maior taxa de mortalidade e sangramento maior. 10 Além disso, a ocorrência de lesão renal aguda no período peri‑procedimento da TAVR também está associada a prognósticos ruins. 11 Por outro lado, alguns estudos anteriores demonstram um impacto positivo da TAVR na função renal, principalmente em pacientes comDRC moderada a grave, com recuperação significativa da TFGe, possivelmente relacionada à melhora do débito cardíaco e redução da congestão venosa sistêmica. 12-14 Demaneira promissora, o presente estudo realizado por Calça et al., 15 fornece dados adicionais sobre o impactopositivoda TAVR na função renal. Através de umestudo retrospectivo e unicêntrico, 233 pacientes comEA submetidos a TAVR foramestratificados em 3 grupos de acordo com a TFGe basal (mL/min/1,73m 2 ): grupo 1 (TFGe > 60), grupo 2 (30 ≤ TFGe < 60) e grupo 3 (TFGe < 30). A função renal foi reavaliada novamente um mês e um ano após a TAVR. Os autores observaram uma melhora significativa na TFGe em pacientes com DRC moderada (grupo 2) a grave (grupo 3) (cerca de 15,6% em um ano; cerca de 58,6% em um ano, respectivamente). Por outro lado, os pacientes do grupo 1 apresentaram um declínio progressivo na TFGe um ano após o procedimento de TAVR (p < 0,001 vs. pré-TAVR). No entanto, houve uma baixa incidência de terapia dialítica em um ano (2,4%). As possíveis razões consideradas pelos autores para esse agravamento da TFGe no grupo 1 foramomaior uso de contraste iodado nesse grupo (65%dos pacientes) e o uso de bloqueadores dos receptores da angiotensina e inibidores da enzima de conversão da angiotensina no período pós-procedimento. A análise de regressão logística multivariada identificou que o uso de contraste iodado foi umpreditor independentede agravamento da função renal, não relacionado ao volume de contraste utilizado. Apesar de suas limitações inerentes (centro único, estudo retrospectivo e observacional), o estudo de Calça et al. 15 traz uma luz promissora sobre o impacto da TAVR na função renal em pacientes comDRCmoderada a grave. Essa disfunção renal pré-procedimento pode não ser um questão de exclusão para a TAVR, dada a possibilidade de melhora a curto e médio prazo. Futuros estudos randomizados, multicêntricos, comum controle do tipo de contraste mais rigoroso e acompanhamento mais longo, são necessários para uma conclusão definitiva. 1112

RkJQdWJsaXNoZXIy MjM4Mjg=