ABC | Volume 113, Nº6, Dezembro 2019

Artigo Original Avila et al. Gravidez e cardiopatias congênitas complexas Arq Bras Cardiol. 2019; 113(6):1062-1069 No entanto, o conhecimento das complicações mais frequentes que ocorrem no pós-operatório tardio das CCC auxilia nas estratégias para preveni-las durante a gravidez. Nesse sentido, um estudo sobre as causas de morte em pacientes com CCC mostrou que insuficiência cardíaca, morte súbita, doença cardíaca isquêmica e endocardite infecciosa foram as mais frequentes. Ademais, entre as lesões anatômicas, excluindo-se a síndrome de Eisenmenger, a transposição das grandes artérias e a circulação de Fontan foram as mais importantes. 8 O artigo sobre 120 necropsias em portadoras de cardiopatias congênitas no InCor 9 corroborou a insuficiência cardíaca como principal causa de morte, uma vez que o remodelamento ventricular em resposta à sobrecarga volumétrica e pressórica ao longo da vida favorece a fibrose e a hipertrofia e redução do número de capilares intersticiais do miocárdio. O tromboembolismo, segunda causa de morte, foi significativamente associado a sinais histológicos de hipertensão pulmonar e também detectado na hipoxemia crônica. A terceira causa de morte registrada no estudo foi a endocardite infecciosa, o que reforçou a recomendação, em nosso protocolo, da antibioticoprofilaxia por ocasião do parto. A hospitalização eletiva como rotina a partir da 28ª semana de gestação para as pacientes em situação de presumível risco mais elevado, independentemente do quadro funcional, fundamentou-se no fato de que o terceiro trimestre é crítico, tanto para a mãe, devido à sobrecarga hemodinâmica e à atividade pró-trombótica (que alcançam os limites máximos), como para o feto, pela prematuridade e restrição de crescimento intrauterino, que são apanágio das CCC. A hospitalização eletiva auxiliou no refinamento do monitoramento materno-fetal, na oxigenoterapia intermitente, na anticoagulação individualizada, na otimização da terapêutica para as possíveis complicações e no planejamento do parto. O estudo também mostrou similaridade na incidência das complicações cardíacas (14,2%) e obstétricas (16,6%), sendo que, em ambas, as mortes maternas foram decorrentes de causas obstétricas (pré-eclâmpsia e hemorragia pós-parto). Isso permite considerar que a reserva cardíaca extremamente limitada dessas pacientes não suporta as intercorrências inerentes ao ciclo gravídico-puerperal. A pré-eclâmpsia, uma das causas de óbito neste estudo, é responsável por 15% das mortes maternas no Brasil, com incidência próxima a 10% na população em geral. 10 Por isso, um diagnóstico precoce e um pré-natal efetivo, embora não a evitem, podem mudar o quadro em mulheres saudáveis. Contudo, nas portadoras de cardiopatias complexas, o prognóstico é reservado devido à enigmática disfunção endotelial sistêmica, característica da doença, e à sobrecarga circulatória determinada pela hipertensão arterial. A hemorragia pós-parto, razão do segundo óbito em nossa casuística, é considerada importante causa obstétrica de morte materna emmulheres cardiopatas, e particularmente expressiva nas pacientes hipoxêmicas. Esse fato foi documentado no relato de 366 parturientes nulíparas portadoras de cardiopatias congênitas, o qual registrou o percentual de 21% de hemorragia obstétrica e identificou a cesárea prematura, a anestesia geral e o uso de heparina profilática como variáveis de maior correlação com sangramento no pós-parto. Além disso, entre as cardiopatias congênitas, a circulação de Fontan foi a situação clínica de maior risco. 11 Em nosso estudo, a associação de hipoxemia e hemorragia pós-parto cesáreo ocorreu em um caso, que resultou na segunda morte materna. Na verdade, a maior morbidade materno-fetal associada à cesárea prematura se deve aos casos de instabilidade clínica materna e de restrição ao crescimento intrauterino, situações habituais nestes casos graves. Um breve destaque deve ser dado às cardiopatias mais frequentes em nosso estudo, como a transposição das grandes artérias e a circulação de Fontan. A evolução promissora do pós-operatório tardio da correção da transposição das grandes artérias, seja a nível atrial (técnicas de Senning ou Mustard) seja a nível arterial (técnica de Jatene), tem possibilitado o desenvolvimento de gravidez. 12,13 Entretanto, existem eventos previstos no pós-operatório tardio que devem ser desfavoráveis durante a gestação. Assim, na correção de Mustard ou Senning, estima-se que 40% das pacientes apresentam arritmias supraventriculares e disfunção ventricular na idade adulta, enquanto, na técnica de Jatene, a insuficiência da valva neoaórtica está presente em1 a 2%dos casos, e as complicações coronarianas ocorrem em 3 a 11% entre os eventos tardios. Com respeito à cirurgia de Rastelli, a evolução tardia depende do tipo de tecido utilizado na confecção do conduto, que pode determinar diferentes graus de calcificação e a oclusão progressiva desse enxerto. 14 Com base nessas considerações, por ocasião da gravidez, é preciso estar preparado para o tratamento da insuficiência cardíaca e de arritmias quando há: disfunção ventricular direita e insuficiência tricúspide após as técnicas deMustard e Senning; insuficiência cardíaca e baixo débito frente aos condutos calcificados após o procedimento de Rastelli; disfunções valvares quando tiver sido usada a técnica de Jatene. 14 O estudo mostrou ainda que, à exceção de uma paciente não operada que evoluiu para aborto espontâneo (caso 12), as demais 14 gestantes com transposição dos grandes vasos da base apresentaram evolução favorável materno‑fetal, independentemente do tipo de correção cirúrgica. Vale ressaltar que as complicações previstas forammuito bemcontroladas com hospitalização e monitoramento constante da mãe e do feto. A técnica de Fontan tem proporcionado a sobrevida de 70% das pacientes com cardiopatia univentricular até a idade fértil. 15 Entretanto, no pós-operatório tardio, são esperadas complicações como: taquicardia atrial, tromboembolismo (estase hepática e do sistema venoso), insuficiência cardíaca, falência hepática e enteropatia perdedora de proteína. A conexão anormal (veia cava e circulação pulmonar), apesar de corrigir a cianose, minimizar a sobrecarga ventricular e ajustar a circulação pulmonar, pode estar prejudicada pelas variações da pressão venosa central e pela pressão negativa intratorácica induzida por hiperventilação e oscilações do débito cardíaco durante a gravidez. A incapacidade de adaptação das pacientes com circulação de Fontan à fisiologia do ciclo gravídico-puerperal foi documentada em nosso estudo, que mostrou piora da classe funcional em todas as pacientes. A insuficiência cardíaca ocorre porque o ventrículo anatômico e funcional anormal é incapaz 1067

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