ABC | Volume 113, Nº3, Setembro 2019

Artigo Original Figueiredo et al. Febre reumática: uma doença sem cor Arq Bras Cardiol. 2019; 113(3):345-354 a preocupação com a falta de disponibilidade vem aumentando nos últimos anos. 23 Esta falta de uma oferta doméstica aceitável de PGB é um problema significativo em vários locais pelo mundo onde a FR/DRC é predominante. Sem acesso consistente a um suprimento barato e de alta qualidade da PGB, crianças em áreas com alta prevalência de FR/DRC permanecerão sob risco de desenvolver essa condição incapacitante e potencialmente fatal. 22 A tendência crescente nas taxas de mortalidade por DCR e FRA, com incremento de 27,3% e 38,1%, respectivamente (2017-2019), assim como a comparação entre os custos totais das morbidades por DCR e o uso de PGB, evidenciam a necessidade de políticas públicas e programas de controle de FRA/DRC que levem ao diagnóstico precoce e à prevenção do desenvolvimento da doença e suas morbidades. Apesar da falta de programas de controle de FRA/DRC no Brasil, essa estratégia de prevenção já foi aplicada em muitos países com respostas positivas, como demonstrado pelos dados a seguir. O programa de 10 anos em Pinar del Río (Cuba) reduziu drasticamente a morbidade e a mortalidade prematura em crianças e adultos jovens com boa relação custo-benefício. 24 Um estudo realizado em Zâmbia mostrou que compreender as percepções e comportamentos do público relacionados à dor de garganta é fundamental para informar os programas de saúde destinados a eliminar novos casos de DRC em regiões endêmicas. Esta pesquisa transversal descobriu que a faringite é comum entre crianças em idade escolar e adolescentes, com mulheres relatando significativamente mais episódios de dores de garganta do que os homens. Os pais/responsáveis têm conhecimento variado da frequência de dores de garganta em seus filhos, e omanejo de faringite pode ser abaixo do ideal para muitas crianças, commais de um quarto recebendo tratamento sem uma avaliação qualificada, o que fornece uma visão da necessidade de campanhas de conscientização pública para a redução da DRC, 25 reforçando ainda mais a necessidade de maior visibilidade para a DCR no Brasil com a implementação do programa, tendo em vista as perspectivas alarmantes de mortalidade mostradas neste artigo. Podemos discutir sobre este aumento na mortalidade, considerando a possível evolução de fatores, tais como o melhor diagnóstico, notificação de mortalidade e acessibilidade à PGB. Apenas cerca de 5% de todos os portadores de febre reumática têm uma fase aguda sintomática, enquanto a maioria dos pacientes com sequelas reumáticas cardíacas graves é diagnosticada apenas na fase final da doença. Na realidade, esses números podem estar subestimados, e desses 5% sintomáticos, apenas cerca de 5% precisam de hospitalização, 26 de acordo com os dados do DATASUS. No Brasil, o estudo PROVAR 27 (o primeiro programa de triagem em larga escala do país) foi implementado em 2014, e revelou uma prevalência ecocardiográfica de 42/1.000 na análise preliminar, contrastando com a prevalência do IBGE de 7/1.000 1 . Isso demonstra que políticas populacionais de triagem são necessárias para identificar esses pacientes assintomáticos, e explica, emparte, o aumento da prevalência devido a melhores métodos diagnósticos; no entanto, são necessários mais estudos para entender as causas reais desse aumento. Omesmo estudo mostra que, embora a prevalência de DRC tenha diminuído em países de alta renda, a falta de desenvolvimento social e econômico e a prevenção primária ruim – especialmente em países de baixa e média renda – perpetuam um ambiente no qual a DRC permanece endêmica e com tendência de crescimento. Além disso, o aumento da taxa de mortalidade ocorre em grande parte devido ao estágio no qual a doença é diagnosticada, sendo um exemplo clássico a jovemmulher que descobre estenose mitral grave somente quando um edema agudo de pulmão é identificado durante a gravidez. 28 Esse aumento progressivo também foi confirmado por outro estudo nacional, 27 o que justifica a maior disponibilidade da ecocardiografia, comcritérios mais sensíveis, especialmente para a DRC subclínica. Nesses casos subclínicos, a ecocardiografia desempenha um papel crucial, pois pode estabelecer o diagnóstico ou até mesmo levantar a suspeita de um possível caso naqueles pacientes que estão atravessando o último período da doença, desde as manifestações agudas da FRA até as últimas complicações da DRC. 29 Ao analisar nossos dados sobre a mortalidade por DRC observamos, até certo ponto, reflexos de FRA não diagnosticada e não tratada adequadamente no passado. Essa lacuna pode durar de 10 a 20 anos. 28 Da mesma forma, ao implementar medidas de triagem populacional para identificar os indivíduos que ocupam essa área cinzenta, os resultados também aparecerão depois de pelo menos uma década. 29 Assim como no Brasil, o número de notificações de FRA e DRC nas ilhas do Pacífico aumentou nos últimos anos, onde as taxas de infecção por SBHGA parecem ser impossíveis de evitar. 30 No mesmo estudo, onde a incidência anual de FRA é de 155 por 100.000, um aumento de 41% foi relatado entre 2004 e 2009, fato atribuído a uma melhor detecção de casos, à existência de registros e um coordenador do programa de saúde. No entanto, é improvável que o aumento da conscientização e dos relatos de casos sejam os responsáveis pelas altas taxas de FRA em curso nessa população, porque a doença se tornou notificável na Austrália em 1996, um exemplo que deveria ser seguido pelo Brasil, não apenas notificando casos de hospitalização, mas obrigatoriamente todos os casos, permitindo maior alcance da profilaxia. É provável que as taxas permaneçam altas por causa de uma falha em abordar adequadamente os determinantes socioeconômicos de saúde, ampliando as já altas taxas de infecção. Consequentemente, isso permanece como uma preocupação significativa em termos de saúde pública, que merece maior atenção. A ocorrência da DRC (considerando uma latência de 10 a 20 anos), na ausência de um histórico de FRA, de fato sugere que a detecção, o diagnóstico preciso e a notificação de FRA permanecem abaixo do ideal. Fatores que contribuem podem incluir a falta de treinamento ou conscientização dos integrantes da equipe de saúde, equipe profissional de saúde temporária em áreas remotas, o acesso precário a serviços médicos e a falta de uso de serviços de saúde devido a fatores diversos. 20 As diferenças entre os critérios ecocardiográficos afetam consideravelmente a aparente prevalência de cardiopatia reumática nos estudos de triagem, enfatizando as dificuldades no diagnóstico da doença subclínica. Alguns podem argumentar que existe uma ampla gama de definições de normalidade, e que a triagem ecocardiográfica 351

RkJQdWJsaXNoZXIy MjM4Mjg=