ABC | Volume 113, Nº3, Setembro 2019

Artigo Original Figueiredo et al. Febre reumática: uma doença sem cor Arq Bras Cardiol. 2019; 113(3):345-354 Introdução De acordo como Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem 10 milhões de casos de faringotonsilite a cada ano, levando a aproximadamente 30.000 casos de febre reumática aguda (FRA). 1 A doença reumática cardíaca (DRC) tem baixa incidência nos países desenvolvidos, com 0,1 a 0,4 casos/1.000 escolares nos EUA, enquanto no Brasil esses valores chegam a 7 casos/1.000 escolares, mostrando que está diretamente associada a fatores ambientais e socioeconômicos. 2 Cerca de 70% dos pacientes com FRA evoluem para cardite, e um terço das cirurgias cardiovasculares realizadas no Brasil são decorrentes de sequelas da DRC. 3,4 A FR foi responsável por um potencial de 5,1 milhões anos de vida perdidos ajustados por incapacidade (DALYs – do inglês “ disability-adjusted life years” ), resultantes de 280.000 mortes em 2004, sendo a sétima e oitava causas demortalidade emorbidade por doenças negligenciadas, respectivamente. 5 A febre reumática é uma doença de natureza autoimune de reação cruzada, desencadeada pela resposta do hospedeiro suscetível após faringotonsilite, causada por Streptococcus β -hemolítico do Grupo A. 6–8 A implementação do tratamento da faringotonsilite causada pelo Streptococcus β -hemolítico do Grupo A, com Penicilina G Benzatina (PGB) em nove dias após o início dos sintomas, pode erradicar a infecção e evitar um primeiro surto de FR 3 aguda ou um novo surto, 9 o que já era defendido pela OMS em 1955. 10 Infelizmente, o esperado parece não ter sido alcançado no Brasil, como mostram nossas análises com dados do Sistema de Informação Hospitalares (SIH) do Sistema Único de Saúde (SUS). 11 O SUS garante a todos no território nacional o acesso universal e igualitário aos cuidados e serviços de saúde. Assim, as políticas de saúde do Brasil incluem ações do setor público (SUS) e do setor privado (saúde suplementar ou planos de saúde privados), mais ações do setor privado no setor público (saúde complementar) e do setor público dentro do setor privado (regulação, inspeção, vigilância). Neste trabalho, apresentamos uma análise de custo das ações e serviços de saúde relacionados à FR e DRC, incididos sobre o SUS, isto é, sob gestão pública, que ocorre de maneira diferente daquela nos sistemas privados. Tendo em vista os dados apresentados e a ausência de um programa nacional de prevenção de FR e DRC, o objetivo deste estudo foi analisar as séries históricas de taxas de mortalidade e custos das doenças, projetando tendências futuras para oferecer novos dados que possam justificar a necessidade de implementar umprograma de saúde pública para a FR. Alémdisso, estimamos os custos anuais das doenças e suas comorbidades no Brasil. Adicionalmente, a taxa de mortalidade por DRC foi comparada às taxas de mortalidade por câncer de mama (CM) e de próstata (CP), doenças que já possuem programas de saúde pública implementados, como no caso dos programas Outubro Rosa 12 e Novembro Azul, 13 respectivamente. Métodos Um estudo ecológico transversal com análise de séries temporais foi desenvolvido para analisar as séries históricas de taxas de mortalidade e custos da doença, utilizando dados do SIH/SUS 11 de 1998 a 2016. O ano de 2017 não foi incluído neste estudo, pois os dados ainda estavam sujeitos a atualizações. Para estimar o custo anual das doenças e suas comorbidades no Brasil, primeiramente determinamos os custos relacionados ao diagnóstico de FRA, profilaxia primária e secundária da DRC e os gastos públicos associados com as consequências da DRC, tais como procedimentos intervencionistas e hospitalizações por insuficiência cardíaca, fibrilação atrial, acidente vascular cerebral isquêmico e endocardite infecciosa. Para este propósito, os dados foram obtidos conforme indicado a seguir: os procedimentos necessários para o diagnóstico de FRA e uso do Critério de Jones, revisado em intervalos irregulares pela American Heart Association (AHA), foram ajustados para a DRC. Para os custos de hospitalização, considerou-se o tempo médio de hospitalização de 7 dias para Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquêmico, insuficiência cardíaca de 4 dias, 4 dias para fibrilação atrial e 17 dias para endocardite infecciosa. 14 Os dados relacionados ao custo dos procedimentos necessários para o diagnóstico de FRA/DRC e hospitalizações devido às consequências da DCR foram obtidos do banco de dados do Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS (SIGTAP) 14 e da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). 15 Esses dados estão disponíveis no Sistema de Informações Hospitalares – SIH/SUS – Sistema Único de Saúde do Brasil. Em segundo lugar, desenvolvemos um cenário hipotético baseado no atual panorama da febre reumática no Brasil, cruzando dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística com dados do estudo REMEDY, 16 com suas respectivas morbidades para estimar o número de casos. O estudo REMEDY envolveu 25 locais em 12 países africanos, Iémen e Índia. Os países foram agrupados em três categorias de renda: países de baixa renda (Etiópia, Quênia, Malawi, Ruanda, Uganda e Zâmbia), países de renda média‑baixa (Egito, Índia, Moçambique, Nigéria, Sudão e Iêmen) e países de renda média (Namíbia e África do Sul). 16 Os custos obtidos foram multiplicados pelo número de casos de infecção por Streptococcus β -hemolítico do Grupo A (SBHGA), FRA, DRC, e morbidade por DRC. Além disso, a taxa de mortalidade da DRC foi comparada com as taxas de mortalidade por câncer de mama (CM) e de próstata (CP), o que foi realizado considerando-se o período de 18 anos (1998 a 2016), utilizando dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do SUS – DATASUS, 11 responsável pela manutenção dos dados de mortalidade no Brasil. Para esta comparação, uma regressão linear simples foi ajustada para cada caso (DRC, CP e CM). O presente trabalho utilizou apenas dados secundários obtidos de fontes de acesso público. A aprovação deste estudo pelo Comitê de Ética em Pesquisa foi dispensada, conforme estabelecido na Resolução 510 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) de 7 de abril de 2016. Análise estatística Para avaliar a tendência das séries históricas, os modelos de regressão linear simples foram ajustados. Ao trabalhar com séries temporais, é comum encontrar problemas de heterocedasticidade e autocorrelação. Para lidar com esses problemas e permitir a realização de inferências válidas para os modelos ajustados, bem como garantir a robustez dos modelos, utilizou-se o estimador HAC ( Heteroskedasticity 346

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