ABC | Volume 113, Nº2, Agosto 2019

Relato de Caso Pereira et al. Efeitos da rabdomiólise exercional sobre a reatividade microvascular Arq Bras Cardiol. 2019; 113(2):294-298 As avaliações da reatividade microvascular foram realizadas um dia antes do início do treinamento e um dia após a alta hospitalar, na parte da manhã, entre 8h e 12h, após um jejum de 12 horas. Os testes microcirculatórios foram realizados após repouso de 20 minutos na posição supina e em uma sala com temperatura controlada (23 ± 1°C). A reatividade microvascular foi avaliada através do sistema de imagem laser speckle de contraste de imagem (PeriCam PSI-NR, Perimed AB, Järfälla, Suécia) em combinação com iontoforese da acetilcolina (ACh) para mensuração não invasiva e contínua das alterações na perfusão microvascular cutânea (em unidade de perfusão arbitrária, APU). 7 Durante o teste de hiperemia reativa pós‑oclusiva (HRPO), a oclusão arterial foi realizada com pressão supra‑sistólica, utilizando‑se um esfigmomanômetro por 3 minutos. Após a liberação da pressão, o fluxo máximo foi medido. A medida do fluxo sanguíneo microvascular cutâneo foi dividida pela pressão arterial média para obter a condutância vascular cutânea (CVC) em APU/mmHg. A densidade capilar, definida como o número de capilares perfundidos por mm 2 de pele, foi avaliada através de microscopia intravital de alta resolução em cores (Moritex, Cambridge, UK). O dorso da segunda falange do dedo médio da mão não dominante foi usado para aquisição de imagem. As imagens foram adquiridas e armazenadas para posterior análise off-line através de sistema integrado semi-automático (Microvision Instruments, Evry, França). A densidade capilar média foi obtida pelo cálculo da média aritmética do número de capilares visíveis (ou seja, perfundidos espontaneamente) contados em três campos microscópicos contíguos de 1 mm 2 cada, como descrito anteriormente. 8 Os exames laboratoriais do paciente podem ser vistos na Tabela 1. Os níveis séricos da enzima CK foram mais de 5 vezes maiores do que os valores de referência laboratoriais e, em combinação com os sintomas, indicaram o diagnóstico de RE. O clearance da creatinina, calculada pela fórmula Cockcroft-Gault, foi sensivelmente reduzida. O tratamento consistiu principalmente de infusão intravenosa de solução salina (≥ 2,5 L/dia) com bicarbonato, para normalização do pH e lavagem da mioglobina 9 e para manter a produção adequada de urina. A tabela 2 mostra a avaliação de citocinas séricas, com níveis elevados de IL-1 β , IL-6, IL-10, IL-1Ra, mesmo após a alta hospitalar. É de notar que, um dia após a alta hospitalar, a reatividade microvascular sistêmica dependente do endotélio foi gravemente prejudicada. Esses resultados podem ser observados tanto nas respostas vasodilatadoras microvasculares farmacológicas (acetilcolina induzida por), quanto fisiológicas (induzida por HRPO) (Figura 1). Finalmente, o recrutamento capilar cutâneo dependente de endotélio também foi prejudicado (Figura 1). Após seis dias de hospitalização e mais duas semanas de repouso domiciliar, o paciente estava totalmente recuperado e apto a retomar suas atividades normais. O prognóstico de RE é geralmente bom quando o restabelecimento total ocorre. 9 Discussão Este relato de caso demonstra que a RE após exercício físico extenuante, realizado em condições ambientais adversas e com acesso limitado a água, pode vir acompanhada de disfunção microvascular sistêmica persistente, detectável até 1 semana após o surgimento dos sintomas, até mesmo depois da normalização das dosagens enzimáticas e da resolução completa da disfunção renal. De fato, uma redução acentuada da reatividade microvascular sistêmica dependente do endotélio, induzida tanto por estímulos farmacológicos (acetilcolina) quanto fisiológicos (hyperemia reativa pós- oclusiva, HRPO), foi observada uma semana após o diagnóstico de RE. Além disso, a função capilar cutânea, mensurada como recrutamento capilar pós-isquêmico, também foi significativamente prejudicada, indicando uma perda da reserva vasodilatadora e da capacidade autorreguladora e a existência de disfunção endotelial microvascular grave. É bem estabelecido que os exercícios de treinamento de intensidade moderada provocam efeitos benéficos sobre a ocorrência de doenças cardiovasculares, através da preservação da função endotelial vascular. 10 Por outro lado, o exercício extenuante aumenta o metabolismo oxidativo e produz um ambiente pró-oxidante, e a consequente disfunção endotelial, 11 ao passo que a atividade física regular e moderada promove um estado antioxidante e preserva a função endotelial. 10 Dessa forma, o exercício de alta intensidade, como o treinamento militar especial, em indivíduos sem treinamento prévio, pode ser prejudicial para a promoção da saúde vascular. As alterações microvasculares descritas anteriormente ocorreram simultaneamente às alterações do perfil de citocinas séricas. No entanto, certamente não é possível estabelecer uma ligação entre ambos os fenômenos no presente relato de caso, já que outras mudanças metabólicas também poderiam estar envolvidas no surgimento da disfunção microvascular. Sabe-se que a RE está criticamente associada à produção de citocinas pró-inflamatórias. 12 Apesar de os níveis séricos de citocina não terem sido obtidos no dia da internação, foi observado um aumento tanto nas citocinas pró-inflamatórias (IL-1 β , IL-6), quanto nas anti-inflamatórias (IL-10, IL-1Ra), após a alta hospitalar, em relação aos valores obtidos imediatamente antes do treinamento militar. Os níveis séricos de IL-6 derivada do músculo, que é considerada um mediador chave liberado durante o exercício extenuante, 13 geralmente começam a subir dentro da primeira hora de exercício prolongado, e continua a aumentar dependendo da duração do exercício. 13 De fato, é bem estabelecido que o aumento de citocinas pró-inflamatórias no momento da lesão muscular influencia a síntese de proteínas de fase aguda e a expressão de citocinas antiinflamatórias, como uma resposta fisiológica para neutralizer uma resposta inflamatória. 13 Além disso, tem sido demonstrado repetidamente que há um aumento nas citocinas antiinflamatórias IL-1ra e IL-10, após o exercício físico com mais de 2 horas de duração. 13 Apesar disso, os níveis séricos de TNF- α não aumentaram uma semana após a RE, indicando que essa citocina tem um perfil cinético diferente, quando comparada com as citocinas pró‑inflamatórias mencionadas anteriormente. Os níveis séricos de INF- γ não mostraram variações importantes no presente caso. Na realidade, a maioria dos estudos na literatura não conseguiram demonstrar um aumento significativo no plasma IFN- γ após o exercício. 13 Os pontos fortes e as limitações da nossa abordagem experimental devem ser considerados. O uso de fluxometria microvascular cutânea por laser, bem como a avaliação dos 295

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