ABC | Volume 112, Nº6, Junho 2019

Minieditorial Uso Racional da Medicina Baseada em Evidências: Por Que Resistimos Tanto? Rational Use of Evidence-Based Medicine: Why We Resist So Much? André Schmidt 1 e Antonio Pazin-Filho 2 Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP - Disciplina de Cardiologia - Departamento de Clínica Médica, 1 Ribeirão Preto, SP – Brasil Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP - Disciplina de Emergências Clínicas - Departamento de Clínica Médica, 2 Ribeirão Preto, SP – Brasil Minieditorial referente ao artigo: Influência comportamental da predição de risco no processo de decisão do cardiologista: o paradoxo do Escore GRACE Correspondência: André Schmidt • Divisão de Cardiologia - HCFMRP-USP - AV. Bandeirantes, 3900. CEP 14048-900, Ribeirão Preto, SP – Brasil E-mail: aschmidt@fmrp.usp.br Palavras-chave Síndrome Coronariana Aguda, Prognóstico, Infarto do Miocárdio, Tomada de Decisão, Conhecimentos, Atitudes e Prática em Saúde, Medicina Baseada em Evidências. DOI: 10.5935/abc.20190100 “O homem é um animal racional que sempre perde a razão quando o chamam a agir racionalmente” Oscar Wilde Os pacientes esperam três coisas durante uma consulta médica: saber o que eles têm, como será o tratamento, e qual o prognóstico da doença. Para todas essas perguntas relevantes, os médicos usam de seu julgamento clínico. Esse termo, que soa tão vago, tem sido amplamente utilizado. Recentemente, pesquisas têm sido realizadas para esclarecer seu significado e desenvolver técnicas para melhorá-lo. Muitos vieses (mais de trinta já foram descritos) ou decisões não racionais podem ocorrer durante o processo de tomada de decisão, e foram exaustivamente estudados em áreas não médicas, tal como economia, que resultou no Prêmio Nobel para Daniel Kahneman. Apesar de comumente observado na racionalidade diagnóstica, a primeira pergunta do paciente também exerce um importante papel na tomada de decisões terapêuticas, e tanto a primeira como a segunda pergunta afetam a terceira. Uma decisão terapêutica baseada somente no julgamento clínico é certamente influenciada por experiências pessoais prévias e conhecimento adquirido, mesmo que esse não seja recente ou atualizado. Na maioria dos casos, essas decisões devem respeitar três princípios fundamentais da tomada de decisão racional – o princípio da dominância, o princípio da invariância e o princípio da falácia do custo irrecuperável ( sunk-cost fallacy ). 1 Em resumo, o primeiro princípio afirma que uma pessoa deve escolher a opção que nunca seja pior que as demais opções e que possa promover um melhor desfecho. O princípio da invariância afirma que os mesmos dados/informações deem ser utilizados da mesma maneira, independentemente de como se apresentem. Finalmente, uma vez que as decisões influenciam o futuro e não o passado, os tomadores de decisões não devem considerar resultados e comportamentos prévios – princípio ou falácia do custo irrecuperável. Nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Carvalhal et al., 2 realizaram um estudo observacional em uma unidade coronariana, em que o escore GRACE foi aplicado em cada internação. Ao contrário do estudo GRACE, os autores incluíram somente pacientes com síndrome coronariana aguda sem elevação do segmento ST em sua coorte. Eles observaram que, apesar da categoria do escore de risco (baixo, intermediário ou alto), a decisão terapêutica da intervenção foi feita em iguais proporções. Além disso, o escore de propensão baseado nas preferências dos médicos teve menor valor prognóstico que o escore GRACE. Assim, por que os médicos optam por não utilizar o escore GRACE? O estudo GRACE foi realizado há 25 anos, utilizando uma grande amostra de pacientes com síndrome coronariana aguda de 94 hospitais de 14 países, obteve dados de todos os aspectos que envolvessemo cuidado desses pacientes, e propôs algumas diretrizes para orientar a escolha de intervenções 3,4 com base nos fatores prognósticos identificados. O escore proposto foi validado em outras coortes. 5,6 Os três princípios citados acima aparentemente não foram considerados. Uma vez que a alternativa invasiva foi escolhida igualmente para todas as categorias de escore de risco, o princípio da dominância foi ignorado, uma vez que exames não invasivos seriam a escolha para aqueles com um escore de risco baixo . Além disso, o princípio da invariância não foi considerado, uma vez que escores de risco similares (isto é, mesma informação) foram tratados de maneira diferente. O terceiro princípio, também conhecido como a falácia do custo irrecuperável, não foi observado, uma vez que, apesar de se conhecer a validação do escore GRACE na predição de eventos, o escore não foi utilizado, provavelmente com base em informações errôneas prévias ou experiências pessoais. Nesta situação, as pessoas tendem a se lembrar dos piores desfechos, mesmo que esses tenham pouca semelhança com aqueles que apresentaram boa evolução. Aqui caberiam outros vieses, tais como o viés do status quo (ou default bias ) e o efeito de bandwagon. 1 O escore de propensão usado no estudo foi menos preditivo de mortalidade que o escore GRACE. Seria interessante saber se, com base nesses resultados, foi feito qualquer mudança no processo de decisão. Alguns aspectos não foram considerados pelos autores. Vieses decorrentes de raça, sexo e condição econômica 727

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