ABC | Volume 111, Nº6, Dezembro 2018

Ponto de Vista Helal et al Morte súbita no atleta jovem Arq Bras Cardiol. 2018; 111(6):856-859 com base em dados locais, nem com evidências robustas, quais sejam: a) identificação da prevalência de MS e suas causas; b) idealmente, posterior avaliação da eficácia de possíveis estratégias de rastreamento, por meio de ensaios clínicos randomizados; c) avaliação da tecnologia em saúde (ATS) do esquema a ser proposto. A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e a Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte (SBMEE) recomendam, conjuntamente, o mesmo esquema de rastreamento que a European Society of Cardiology (ESC): 6,8 anamnese, exame físico e eletrocardiograma de repouso de 12 derivações (ECG), independentemente da presença ou não de fatores de risco. O esquema proposto pela ESC é fortemente influenciado pelas evidências observacionais produzidas na Itália. Inicialmente, foi verificado que jovens atletas da região do Vêneto, em comparação com outras regiões do mundo, apresentavam risco elevado de MS durante a prática esportiva competitiva. 9 Em 2006, Corrado et al., 10 destacaram, nessa região, a alta prevalência de displasia arritmogênica do ventrículo direito (DAVD), e levantaram a hipótese de que desqualificar atletas com seu diagnóstico ou suspeita (ou de doenças semelhantes) seria eficaz em reduzir mortalidade por MS em eventos esportivos. 10 Tais achados intensificaram a discussão sobre a implementação de um esquema específico, que tornaria obrigatório o ECG, juntamente com a anamnese e o exame físico, no rastreamento de qualquer pessoa a se engajar em um programa de exercício físico competitivo e estruturado. Dois anos depois e críticas à parte, através de publicação clássica do mesmo grupo de pesquisadores, o esquema foi testado e demonstrou redução de 89% dos casos de MS em atividades competitivas envolvendo atletas jovens naquele país. 11 Por sinal, há mais de duas décadas o EPP é obrigatório para todo atleta amador ou profissional regulamentado na Itália, sendo que uma lei federal rege todas as entidades esportivas regulatórias. 12 Por outro lado, a conduta conjunta recomendada pelo American College of Cardiology (ACC) e pelo American College of Sports Medicine (ACSM) retira a obrigatoriedade do ECG, sob o argumento de que a incidência anual de MS nos Estados Unidos (EUA) seria muito menor do que a verificada na Itália. 5 Além disso, reiteram que a especificidade subótima do ECG para detectar anomalias em atletas pode resultar em um número muito elevado de resultados falsos-positivos. Nesse particular, as consequências globais de um resultado falso‑positivo 13 podem culminar em investigação excessiva (e.g., ecocardiograma, ressonância cardíaca, entre outros exames), gerando custos financeiros e pessoais indesejáveis; ou mesmo desqualificação inapropriada. No entanto, indo de encontro à sustentação das entidades americanas supracitadas, uma análise de custo-efetividade feita por um grupo de Stanford 14 apontou que a inclusão do ECG ao exame clínico preveniria 2,09 mortes adicionais para cada 1000 atletas, com custo individual estimado de 89 dólares americanos por exame e estimativa de custo-efetividade de aproximadamente 43 mil dólares por anos ajustados por qualidade (QALY). Para o Brasil, estes dados são particularmente importantes, uma vez que, neste exato momento, o Ministério da Saúde discute, tanto junto ao Congresso Nacional quanto às entidades acadêmicas que realizam ATS, o limiar de disposição a pagar por tecnologia adicionada. Não se sabendo, até o momento, quão acomodável ao orçamento público é o custo de adição de uma tecnologia em saúde a ser ofertada por QALY, parece-nos muito importante que a tomada de decisão no Brasil seja feita com base no conhecimento das estatísticas locais, o que, novamente, evidencia a necessidade de um registro nacional de MS em jovens atletas adequadamente conduzido. Porque um registro nacional é necessário Dado que a etiologia da MS no esporte em jovens atletas é diversa, com influência regional e genética, a identificação das prevalências locais é de suma importância para a tomada de decisão com base em evidências. Por exemplo, a etnia tem influência sobre a incidência de MS em jovens atletas. Nos EUA, em atletas negros de ligas de basquetebol e futebol americano, verificou-se incidência aumentada de MS em relação a outros estratos étnicos, tendo como causa, no mais das vezes, a miocardiopatia hipertrófica (MCH). 15 Dados de autópsias realizadas naquele país mostraram que atletas negros morreram duas vezes mais por MCH do que atletas brancos (20% vs. 10%). 16 Tais informações permitem supor uma possível divergência no quadro de apresentação da MCH em diferentes etnias, podendo ser mais maligna em indivíduos negros. Por sinal, em pelo menos 50% das vezes, a MCH se apresenta como uma doença autossômica dominante monogênica. Sua prevalência global é tradicionalmente estimada em 1:500 indivíduos, 17 mas dados mais recentes apontam que ela pode ser ainda mais frequente do que o estabelecido no passado, e tais dados são corroborados pelos avanços da pesquisa genética. 18 No Brasil, a frequência da MCH não é solidamente conhecida. Nesse particular, é nossa opinião que essa enfermidade serve como um exemplo da importância do ECG no cenário do atleta competitivo, uma vez que a suspeita dessa doença pode surgir através desse exame em um percentual elevado dos casos. Aliás, alterações no segmento ST, na onda T, assim como a presença de ondas Q patológicas, 19 servem como sinais de alerta e, a partir disso, exames mais elaborados (de maior valor preditivo positivo) podem ser solicitados em um cenário de maior probabilidade diagnóstica pré-teste. Quando do diagnóstico (clínico e/ou molecular), a ablação septal, a miectomia, e/ou a disponibilização de um cardiodesfibrilador implantável (CDI) podem ser indicados. Da mesma forma, mas somente em casos bem selecionados, o afastamento de atividades competitivas pode ser o desfecho final para carreira do atleta. 20,21 No que diz respeito à etnia da população brasileira, a qual é extremamente miscigenada e com grande prevalência de negros, 22 o conhecimento de causas de MS em atletas brasileiros dessa raça nos parece muito importante para a estratificação do risco desses indivíduos. Em relação às causas de MS por distúrbios nos canais iônicos, o rastreamento genético, 23 já levantado pela diretriz da SBC de 2013, 8 tem sido sugerido como estratégia possível para auxiliar na prevenção (nota dos autores: quando bem indicada), dada a alta contribuição do fator genético para a 857

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