ABC | Volume 111, Nº5, Novembro 2018

Ponto de Vista Flexibilização do Jejum para Determinação Laboratorial do Perfil Lipídico no Brasil: Ciência ou Conveniência? Flexibilization of Fasting for Laboratory Determination of the Lipid Profile in Brazil: Science or Convenience? Caio Maurício Mendes de Cordova e Caroline Galgowski Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB), Blumenau, SC - Brasil Correspondência: Caio Maurício Mendes de Cordova • Rua São Paulo, 2171, Campus 3, FURB. CEP 89030-001, Itoupava Seca, Blumenau, SC – Brasil E-mail: cmcordova@furb.br, profcaiocordova@gmail.com Artigo recebido em 29/11/2017, revisado em 11/04/2018, aceito em 11/04/2018 Palavras-chave Jejum; Lipídeos; Triglicerídeos; Colesterol; Colesterol- LDL; Colesterol- HDL. DOI: 10.5935/abc.20180174 Uma declaração endossada por associações de especialidades médicas foi publicada em nosso país, recomendando a flexibilização do jejum antes do exame de sangue para a determinação laboratorial do perfil lipídico, incluindo Colesterol Total (CT), Lipoproteína de Alta Densidade-Colesterol (HDL-colesterol) e Triglicerídeos (TG), além do cálculo correspondente do Colesterol Não HDL (CT-HDL-colesterol). 1 Considerou-se que os resultados de não jejum não diferiam clinicamente daqueles obtidos após jejum, e estudos prospectivos e metanálises têm demonstrado consistentemente que o não HDL-colesterol em um estado de não jejum seria pelo menos tão eficiente quanto a Lipoproteína de Baixa Densidade (LDL-colesterol) na predição da Doença Cardiovascular (DCV). Também foi recomendado que, quando TG> 4,52 mmol/L, a fórmula proposta por Martin et al., 2 deve ser utilizada para a estimativa de LDL-colesterol. A declaração foi baseada no consenso europeu sobre o assunto publicado por Nordestgaard et al. 3 No entanto, a aplicação automática desta abordagem no Brasil merece considerações mais profundas, considerando o impacto que ela pode causar no atendimento ao paciente. Além disso, está longe de ser um consenso entre cientistas e profissionais de laboratórios clínicos no país, como ficou evidente durante o 44º Congresso Brasileiro de Análises Clínicas, realizado de 11 a 14 de junho de 2017, e o 51º Congresso Brasileiro de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial, realizada de 26 a 29 de setembro de 2017. De fato, um resultado de não HDL-colesterol em estado de não jejum seria pelo menos equivalente à LDL-colesterol para o estabelecimento de metas. 4 No entanto, um valor de LDL-colesterol em não jejum, bem como a não HDL-colesterol em estado de não jejum, poderia ser menos sensível para a predição de DCV, 5 especialmente emmulheres. 6 Esta possível questão deve ser avaliada judiciosa e independentemente em nossa população específica. Em segundo lugar, deve-se notar que o alvo do tratamento para anãoHDL-colesterol é simplesmente0,8mmol/L (30mg/dL) mais alto do que o respectivo alvo para LDL-colesterol. 7 Isto foi estabelecido de maneira empírica, considerando-se um valor médio de 0,8 mmol/L para lipoproteína de densidade muito baixa (VLDL-colesterol). Obviamente, isso não é consistente com a realidade, especialmente em um estado pós-prandial. Por outro lado, os níveis-alvo de tratamento para a LDL-colesterol estão bem estabelecidos, baseados em grandes estudos prospectivos após décadas de sólido trabalho científico. Terceiro, os principais motivos para a coleta de sangue sem jejum prévio, conforme sugerido pelo consenso europeu 3 e pela declaração brasileira, 1 parecem estar mais relacionados a questões comerciais do que científicas. A base lógica incluiu uma alegada “inconveniência por ter que retornar em uma consulta separada para obter o perfil lipídico em jejum [ ...], uma carga para o laboratório por ter um grande volume de pacientes que chegam para realizar testes pela manhã [...], uma carga para os médicos revisarem e tomarem decisões com base nos achados do perfil lipídico em uma data posterior [...]”, e uma hipótese de melhora “na adesão do paciente ao teste lipídico” . Apenas a última motivação pode ter algum fundamento científico, mas ainda precisa ser provada. Deve-se notar também que os procedimentos de coleta de amostras de sangue no Brasil são bem diferentes daqueles praticados na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Nesses países, as amostras biológicas são frequentemente coletadas logo após a consulta com o médico, na clínica ou hospital; as amostras são coletadas em horários programados pela logística do laboratório, e o resultado é enviado diretamente ao médico. Os pacientes nem sabem o que é um laboratório clínico; eles apenas sabem que suas amostras de sangue são enviadas para algum lugar para serem analisadas por pessoas de quem eles não têm ideia quais são suas habilidades e formação. No Brasil, por lei, os resultados laboratoriais pertencem aos pacientes, e os pacientes não hospitalizados, muitas vezes, vão ao centro de coleta do laboratório, a menos que uma visita domiciliar seja agendada, para coleta de sangue ou outra coleta biológica, dias após a primeira consulta, onde recebem instruções adequadas sobre os requisitos pré-analíticos para cada teste solicitado. As realidades são completamente diferentes. Quarto, precisamente derivado do ponto anterior, o impacto destas recomendações ainda não foi avaliado sobre o comportamento dos pacientes em relação ao jejum necessário para outros testes laboratoriais. E, pior ainda, já observamos movimentos de algumas corporações indicando que o jejum para qualquer teste de laboratório não seria mais necessário. Do ponto de vista técnico e científico, as amostras de sangue em não jejum não são adequadas para a medição 747

RkJQdWJsaXNoZXIy MjM4Mjg=