ABC | Volume 110, Nº6, Junho 2018

Artigo Original Reis et al Miocardiopatia Hipertrófica Arq Bras Cardiol. 2018; 110(6):524-531 Introdução A miocardiopatia hipertrófica (MCH) é caracterizada por hipertrofia do ventrículo esquerdo (HVE) não explicada somente por condições de sobrecarga ventricular. 1 Trata-se da patologia genética cardiovascular mais comum, com uma prevalência estimada na população geral de 1:500 indivíduos. 2,3 A MCH é uma doença complexa, desde a diversidade genética (para a qual já foram identificadas mais de 1400 mutações, em 11 genes diferentes), à expressão fenotípica, às características histológicas e à sintomatologia manifestada. 4,5 A morte súbita cardíaca (MSC) é a consequência mais imprevisível e devastadora da MCH, pois ocorre predominantemente em jovens, indivíduos assintomáticos ou com sintomatologia frustra. 4-6 Dados recentes apontam para uma incidência de 0,7%/ano de MSC, sendo a incidência total por morte cardiovascular de 1,4%/ano. 7 É reconhecida a eficácia exclusiva do cardioversor desfibrilador implantável (CDI) na prevenção de MSC. 1,8,9 Na abordagem aos pacientes com MCH e respectivas famílias, torna-se assim fundamental a correta avaliação do risco de MSC e do potencial benefício da implantação desse dispositivo em prevenção primária. 1-3 De acordo com as recomendações da American College of Cardiology Foundation / AmericanHeart Association ( ACCF/AHA) para o diagnóstico e tratamento da MCH publicadas em 2011, a presença de pelo menos um fator de risco para MSC [espessura máxima da parede do ventrículo esquerdo (VE) ≥ 30 mm, síncope inexplicada, taquicardia ventricular não sustentada (TVNS), história familiar de morte súbita e resposta anormal da pressão arterial durante o exercício] constitui uma recomendação classe IIa para a implantação de CDI em prevenção primária. 10 Contudo, um estudo recente de O’Mahony et al. 11 sugeriu que os critérios utilizados sobrestimavam o risco de MSC, resultando na implantação excessiva e desnecessária de CDI numa porcentagem substancial de pacientes, expondo-os a complicações iatrogênicas desnecessárias.Concluiu-se ainda que o poder limitado na estratificação de risco resulta do fato de o algoritmo basear-se numa classificação dicotômica das variáveis de risco. 11 Assim, reconhece-se que os fatores de risco não são estáticos e que apresentampotencial evolutivo cumulativo, com o correspondente aumento de probabilidade de MSC. 12 Perante as questões levantadas, em 2013 foi proposto um novo modelo matemático que estima o risco individual deMSC em 5 anos. 13,14 Esse modelo baseado num estudo retrospectivo de uma população de 3675 pacientes de seis centros distintos engloba alguns fatores de risco clássicos, combinados com o gradiente na via de saída do VE, com o diâmetro do átrio esquerdo e com a idade, consideradas essas últimas como variáveis contínuas. 13 A fórmula utilizada é a seguinte: Probabilidade de MSC em 5 anos = 1 – 0,998 exp (índice de prognóstico) Índice de Prognóstico = [0,15939858 x espessura máxima da parede (mm)] -0,00294271 x espessura máxima da parede 2 (mm 2 )] + [0,0259082 x diâmetro átrio esquerdo (mm)] + [0,00446131 x gradiente máximo (repouso/Valsalva) na via de saída do VE (mmHg)] + [0,4583082 x história familiar de MSC] + [0,82639195 x TVNS] + [0,71650361 x síncope inexplicada] - [0,01799934 x idade no momento da avaliação clínica (anos)]. De acordo com a literatura, esse escore apresenta maior acurácia na distinção de pacientes de baixo e alto risco, 13 tendo sido incorporado nas recomendações mais recentes da European Society of Cardiology (ESC) publicadas em 2014 como método válido e independente para estratificação de risco. 1 A comparação direta do valor discriminativo dos dois sistemas de escore de risco na identificação de pacientes com necessidade de um CDI numa população não selecionada de doentes com MCH não foi ainda realizada em Portugal. O objetivo deste trabalho consistiu em comparar a estratificação de risco de MSC numa população de pacientes com MCH, segundo as recomendações de 2011 e 2014 e caracterizar o desempenho clínico do modelo de risco de MSC por MCH de forma individual numa população portuguesa de pacientes com MCH. Métodos População Análise retrospectiva, unicêntrica de pacientes com diagnóstico de MCH seguidos regularmente em consulta externa de cardiologia num único centro terciário, ao longo de 6 anos. A definição de MCH baseou-se na presença de espessura da parede ≥ 15mm em um ou mais segmentos do miocárdio do VE avaliado por qualquer técnica de imagem [ecocardiografia, ressonância magnética cardíaca (RMC) ou tomografia computorizada (TC)] que não fosse explicada apenas por alterações de carga ventricular esquerda. O diagnóstico clínico da MCH num familiar de primeiro grau de um paciente com doença inequívoca (HVE ≥ 15 mm) baseia-se na presença do aumento inexplicado da parede do VE ≥ 13 mm em um ou mais segmentos miocárdicos, medido através de técnicas de imagem cardíaca. 1-3,15,16 Foram incluídos um total de 109 casos com HVE para análise. Foram excluídos os pacientes cujo estudo complementar revelou causas metabólicas e neuromusculares hereditárias (2 pacientes com amiloidose cardíaca, 1 paciente com síndrome de Noonan e 1 paciente com doença de Anderson-Fabry). A amostra total do estudo foi de 105 pacientes-índex com diagnóstico de MCH. A recomendação para implantação de CDI foi avaliada com recurso às recomendações ACCF/AHA de 2011. Na população em análise, os pacientes foram submetidos a implantação de dispositivo quando apresentavam pelo menos um fator de risco para MSC, segundo as guidelines de 2011. Posteriormente, foi feita análise baseada nas recomendações atuais (ESC 2014), utilizando os dados dos pacientes na altura do diagnóstico. O atual modelo de risco de MSC por MCH integra um conjunto pré-definido de 7 variáveis potencialmente prognósticas. 1 Com recurso a uma calculadora disponível online foi gerado um escore de risco preditivo de MSC por MCH em 5 anos. Os pacientes de acordo com esse valor foram estratificados em três categorias de risco para implantação de CDI: < 4%/5 anos (CDI geralmente não considerado); 4% a 6%/5 anos (CDI pode ser considerado); > 6%/5 anos (CDI deve ser considerado). 1 525

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