ABC | Volume 110, Nº3, Março 2018

Editorial Febre Amarela e Doença Cardiovascular: Uma Interseção de Epidemias Yellow Fever and Cardiovascular Disease: An Intersection of Epidemics Gláucia Maria Moraes de Oliveira 1 e Roberto Muniz Ferreira 1,2 Programa de Pós-Graduação em Medicina (Cardiologia) do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina e do Instituto do Coração Édson Saad da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ – Brasil 1 Hospital Samaritano, Rio de Janeiro, RJ – Brasil 2 Correspondência: Gláucia Maria Moraes de Oliveira • Universidade Federal do Rio de Janeiro – R. Prof. Rodolpho P. Rocco, 255 – Pr dio do HU 8º andar – sala 6, UFRJ. CEP 21941-913, Cidade Universitária, RJ – Brasil E-mail: glauciam@cardiol.br , glauciamoraesoliveira@gmail.com Palavras-chave Febre Amarela; Ecossistema Tropical; Infec ões por Arbovirus; Aedes; Falência Hepática; Falência Renal Crônica; Hemorragia; Bradicardia; Stents Farmacológicos / efeitos adversos. DOI: 10.5935/abc.20180041 As arboviroses constituem um importante problema de saúde pública especialmente em países de regiões tropical e subtropical, como o Brasil. Nesses locais, predominam os vírus das famílias Flaviviridae, responsáveis pela Dengue, Zika e Febre Amarela (FA), e Togaviridae , causador da Chikungunya. Nos anos mais recentes, o número de casos aumentou devido a diversos fatores, dentre os quais destacam-se as modifica ões ocorridas no meio ambiente, tais como desmatamento e mudan as climáticas, ocupa ão desordenada das cidades com baixas condi ões higiênico-sanitárias, al m do aumento da mobilidade de viajantes internacionais. Essas ocorrências possibilitaram a coloniza ão de novas áreas pelos vetores, especialmente o Aedes aegypti , que pode ser encontrado em cerca de 80% do território brasileiro. 1,2 Os vírus da Dengue, que apresentam quatro sorotipos distintos, foram responsáveis por epidemias isoladamente ou em co-infec ão em 1984–1985, 1997–1999, 2004–2007. O vírus da Chikungunya, originário do território africano, sucedeu a Dengue no Brasil em 2014, com apresenta ão clínica e laboratorial semelhante, dificultando o diagnóstico diferencial. Em 2015, os primeiros casos de Zika foram relatados no Brasil. As manifesta ões clínicas dessas arboviroses estão sumarizadas na Tabela 1. 2-4 Segundo a Organiza ão Mundial da Saúde, a FA endêmica no Brasil desde os anos de 1900, com ciclos silvestre e urbano, amplificados pela presen a do Aedes aegypti nas cidades. Nas últimas d cadas, houve importante redu ão do número de casos pelo aumento da cobertura vacinal. Por outro lado, a expansão da doen a de áreas endêmicas para as vizinhan as com características ecológicas semelhantes permitiu o aparecimento da epidemia recente nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. 5 Os sinais e sintomas da FA podem ser vistos na Tabela 2, ressaltando-se as falências hepática e renal, assim como as hemorragias que ocorrem nas apresenta ões mais graves. A maioria dos macacos na África apresenta resistência ao vírus da FA, diferentemente das esp cies neotropicais das Am ricas, que são mais susceptíveis às infec ões fatais, especialmente o Alouatta ssp, que serve como sentinela para o vírus da FA. A FA nesses modelos animais caracterizada por virose hemorrágica com falências orgânicas múltiplas e choque cardiovascular, semelhante ao que ocorre em humanos. Em macacos Rhesus , foi descrita linfopenia acentuada precedendo os danos esplênicos, hepáticas, renais e dos tecidos linfóides. Esses achados são provavelmente decorrentes da replica ão viral, libera ão de citocinas, IL-4, IL-5, IL-6, IL-8, IL-12/23p40, IL-15, IL-17, G-CSF, GM-CSF, sCD40, RANTES, MCP-1 e INF Ɣ , e expressão gênica associadas com a resposta imune, o metabolismo iônico e a apoptose. 6,7 O acometimento cardiovascular nas arboviroses foi descrito em 1822 na FA, com comprometimento miocárdico caracterizado por bradicardia. Posteriormente Lloyd 8 relatou prolongamento da condu ão atrioventricular e altera ões da repolariza ão ventricular. Em 1965, foram referidas tamb m bradicardia e hipotensão na Chikungunya, e, em 1973, observou-se miocardite, pericardite e fibrila ão atrial na Dengue. 9,10 Revisão sistemática recente reportou que as manifesta ões cardiovasculares são comuns na Chikungunya, especialmente hipotensão, choque, arritmias, miocardite, cardiomiopatia dilatada e insuficiência cardíaca congestiva com eleva ão de troponina. 11 A avalia ão histopatológica de tecido cardíaco de um caso fatal de miocardite e choque cardiogênico por Dengue no Brasil demonstrou necrose muscular e edema intersticial com partículas virais nos cardiomiócitos e no espa o intersticial, sugerindo a a ão direta do vírus no miocárdio. 12 Foram relatados casos de miocardite, insuficiência cardíaca, arritmia, fibrila ão atrial e taquicardia ventricular e supraventricular na Zika. 13 A variabilidade de apresenta ão clínica da FA desde formas assintomáticas at quadros graves afeta diretamente a estrat gia de abordagem terapêutica da doen a. As manifesta ões malignas estão associadas a taxas de letalidade de at 50%, requerendo, por isso, aten ão e cuidados diferenciados. 14 Embora a doen a não apresente um tratamento específico que seja comprovadamente eficaz, os suportes respiratório, hemodinâmico, metabólico e hemostático, al m do controle adequado de eventuais comorbidades, são fundamentais para estabelecer um meio propício no qual o paciente possa se recuperar. Nesse contexto, os crit rios estabelecidos pelo Minist rio da Saúde para acompanhamento ambulatorial ou interna ão hospitalar tamb m devem ser aplicados a pacientes cardiopatas (Tabela 2). 14 Entretanto, algumas particularidades do manejo clínico devem ser lembradas nesse grupo de pacientes. Não existem trabalhos na literatura que tenham descrito a forma mais segura de manejar pacientes portadores de doen a arterial coronariana (DAC) durante um quadro de FA. A experiência na abordagem de epidemias relacionadas a outras arboviroses no Brasil, por m, poderia servir como 207

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