ABC | Volume 110, Nº2, Fevereiro 2018

Minieditorial A Forma Indeterminada da Doença de Chagas The Indeterminate Form of Chagas Disease Victor Sarli Issa Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Hospital do Coração (HCor), São Paulo, SP – Brasil Correspondência: Victor Sarli Issa • Rua Mato Grosso, 306, conjunto 1616-B. CEP 01239-040, Higienópolis, São Paulo, SP – Brasil E-mail: victorissa@cardiol.br Palavras-chave Doença de Chagas/fisiopatologia; Miocardiopatia Chagásica; Disfunção Ventricular; Fibrose Endomiocárdica; Diagnóstico por Imagem; Epidemiologia. DOI: 10.5935/abc.20180027 A presença de áreas de fibrose difusa no tecido miocárdico é uma característica marcante da cardiopatia da doença de Chagas. 1 Os mecanismos propostos para o surgimento dessas áreas de fibrose são variados e incluem dano direto do Trypanosoma cruzi ao tecido cardíaco, isquemia tecidual por alterações da microcirculação e trombose microvascular mediada por processos inflamatórios 2 e imunológicos. 3 A fibrose miocárdica não somente revela aspectos importantes da fisiopatologia da doença, mas também possui significado clínico, 4 já que sua progressão pode levar a lesões no sistema de condução, contribuir para a gênese de arritmias e para a disfunção ventricular sistólica e diastólica, bem como favorecer o surgimento de fenômenos tromboembólicos a partir de áreas de hipocinesia ou acinesia. Nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia , são apresentados resultados de estudo realizado conjuntamente em três diferentes centros de Salvador, Bahia, a respeito do significado clínico do achado de fibrose em pacientes com doença de Chagas, tanto na forma indeterminada como na cardiopatia chagásica (com e sem disfunção ventricular esquerda). A pesquisa de fibrose foi feita pela aquisição de imagens em ressonância magnética com a técnica de realce tardio. Os autores reportam o achado de realce tardio compatível com fibrose em 41% dos pacientes com a forma indeterminada, valor semelhante ao encontrado em pacientes com cardiopatia sem disfunção ventricular. Como importante achado adicional, foram também semelhantes entre os grupos outras variáveis, como as características clínicas, nível de peptídeo natriurético tipo B, troponina, interleucinas 2, 4, 6 e 10, fator de necrose tumoral alfa e interferon gama. 5 Estudos anteriores também identificaram fibrose miocárdica em pacientes com doença de Chagas e correlacionaram sua intensidade com o grau de disfunção ventricular e de sintomas. Uma análise de 51 pacientes com doença de Chagas com técnica de realce tardio encontrou imagens compatíveis com fibrose miocárdica em 20% dos 15 portadores da forma indeterminada. 6 Achados semelhantes foram encontrados também por outras técnicas de imagem: estudo com 40 pacientes com a forma indeterminada da doença utilizou a tomografia computadorizada associada a cintilografia por emissão de pósitrons ( gated- SPECT) e detectou algumas alterações na perfusão e contratilidade miocárdica em 25% dos indivíduos, incluindo defeitos de perfusão, redução da fração de ejeção e dissincronia intraventricular. 7 É de se notar que o achado de fenótipo semelhante entre os pacientes com a forma indeterminada e aqueles com cardiopatia (e função ventricular esquerda normal) reportado por Rabelo et al., 5 traz à tona discussão sobre o significado da definição da forma indeterminada. Esse conceito tem sido aplicado a pacientes com sorologia positiva para o Trypanosoma cruzi e ausência de doença no trato gastrointestinal ou de dano miocárdico pela avaliação clínica, radiografia de tórax e eletrocardiograma. Entretanto, o valor dessa definição tem sido questionado frente aos métodos atuais de avaliação da função e morfologia cardíacas. Uma forma para se estimar o valor desses achados pode advir da análise da evolução dos pacientes no longo prazo. 8 Nesse sentido, o estudo do ano 2001 com 160 pacientes com a forma indeterminada, seguidos por 98 meses, e baseado em dados clínicos, eletrocardiográficos e ecocardiográficos (estudo bidimensional emmodoM) encontrou fração de ejeção estável no seguimento apesar do surgimento de alterações eletrocardiográficas. 9 Um estudo com seguimento de 10 anos de doadores de sangue com sorologia positiva para Trypanosoma cruzi estimou incidência de progressão para cardiopatia em 1,85 casos por 100 pessoas‑ano; também aqui, o diagnóstico de cardiopatia esteve restrito a alterações eletrocardiográficas e de ecocardiografia bidimensional. 10 Não estão ainda disponíveis, entretanto, estudos que tenham analisado o seguimento de longo prazo de pacientes com a forma indeterminada da doença de Chagas à luz das técnicas correntemente disponíveis para a análise da função emorfologia miocárdicas e com dados a respeito de mortalidade. Por fim, ainda que os métodos para identificação de pacientes de maior risco ou com alterações morfológicas subclínicas tenham progredido ao longo das últimas décadas, a possibilidade de melhora do prognóstico dos pacientes ainda esbarra nas limitações da terapia, em especial, em face dos resultados negativos a respeito do tratamento etiológico das formas crônicas da doença de Chagas. 11 Essas e outras dificuldades que persistem no manejo de pacientes com doença de Chagas são estímulo constante para médicos e pesquisadores que lidam com tão grave afecção. 111

RkJQdWJsaXNoZXIy MjM4Mjg=