Caminhos da Cardiologia

O Sistema Circulatório de Galeno a Rigatto

Celmo Celeno Porto, Salvador Rassi, Joffre Marcondes de Rezende, Paulo César B. Veiga Jardim
Goiânia, GO

Luiz V. Décourt
Coordenador
 

 

Os autores do presente trabalho focalizam dois tipos de acontecimentos que, de certa forma, se associam. 

De início, o tema insere-se diretamente no campo de atividade desta Secção, com abordagem de aspectos históricos ligados à circulação do sangue. E é ressaltada a ampla repercussão do aparecimento da obra mestra de Harvey ao ser reproduzido texto de Descartes sobre o assunto, publicado cerca de oito anos mais tarde. Texto de um filósofo e homem da ciência insatisfeito com a posição escolástica e profundamente interessado na problemática do método, ou seja, do caminho correto para obtenção do conhecimento através da capacidade natural da razão.

Completando a linha de pensamento – e atingindo o núcleo do trabalho – os autores encarecem o significado de uma proposta de Rigatto, em sua concepção de zonas do organismo que atuam, anatômica e funcionalmente, como "corações". As eventuais vantagens dessa caracterização, perante os bem conhecidos aspectos morfológicos e hemodinâmicos desses territórios, podem ser discutidas, mas a análise do assunto é atraente.

Devemos nos lembrar que concepções e corpos de doutrina associam-se com influência recíproca. Novas idéias propõem novas teorias e novos pontos de vista revigoram as possibilidades originais das concepções. E sempre se deve esperar alga de expressivo desse binômio fecundo e estimulador.

 

A circulação do sangue sempre intrigou o homem. Nos escritos mais amigos encontram-se referências ao coração, muitas delas fruto apenas da imaginação, sem qualquer relação com as características anatômicas e as funções do sistema cardiovascular.

Hipócrates (c. 460-370 a.C.), sempre citado quando se buscam as raízes da ciência médica, já que foi ele quem a despiu de seus aspectos mágicos e sobrenaturais, sabia pouco sobre o funcionamento do sistema circulatório, embora reconhecesse que o pulso dependia do coração 1-4.

Aristóteles (c. 384-322 a.C.), cujas idéias influenciaram profundamente os médicos por muitos séculos, afirmava que o coração possuía um sem-número de funções, entre elas destacava ser ali a sede da inteligência e o local de formação do calor animal. Embora dotado de inteligência e de raciocínio privilegiados, a ponto de ser considerado como um dos formadores do pensamento ocidental, a nos influenciar até os dias de hoje, Aristóteles ficou longe da verdade quando considerou que o coração era constituído de três cavidades sem qualquer relação com os vasos e com a circulação do sangue. Coube a Praxágoras (c. 300-400 a.C.), fazer a distinção entre veia e artéria, mas ficou responsável por um erro que durou séculos, quando afirmou que somente as veias continham sangue, enquanto nas artérias corria um vapor misterioso que se exalava pela respiração quando a pessoa morria. Na sua interpretação o "último suspiro" marcava a perda definitiva da energia vital. Por certo, o que para nós hoje é uma afirmativa absurda originou-se no fato de que nos cadáveres as artérias se encontram vazias e as veias cheias de sangue.

Erasístrato (séc. IV a.C.) da Escola de Alexandria, apoiando-se nas idéias de Praxágoras, admitia estar no ar o espírito vital, aspirado para os pulmões através da traquéia, dali sendo conduzido pela artéria venosa (veias pulmonares) para o ventrículo esquerdo de onde era distribuído para o corpo todo 1-4 .

Conhecimentos e especulações foram se acumulando, sempre em busca de uma visão de conjunto da circulação sangüínea. A nosso ver três concepções merecem destaque: a de Galeno, proposta há quase 2.000 anos; a de Harvey há quase 400 anos e a de Rigatto há apenas seis anos.

 

Concepção de Galeno

Galeno (c. 131-201 d.C.), um dos maiores nomes da medicina de todos os tempos possuía inteligência arguta, espírito indagador, formou vasta clientela e atraiu uma legião de discípulos que se dispersaram por toda a Europa, difundindo com certo fanatismo os ensinamentos do mestre. Galeno propôs interpretações de inúmeros fenômenos por ele observados e uma das mais engenhosas foi sobre a circulação sangüínea.

Galeno partia do ponto de vista de que o funcionamento do corpo humano era governado pela interação de três órgãos – fígado, coração e cérebro – dos quais todos os outros dependiam.

Em sua concepção (fig. 1), os alimentos seriam absorvidos no intestino sob a forma de kilo, sendo, então, levados pela veia porta para o fígado, onde se transformavam em sangue, impregnando-se de uma essência especial, constituída de espíritos naturais, responsáveis pelas atividades primárias, menos nobres, do organismo. As veias que partiam do fígado distribuíam os espíritos naturais, os quais dariam origem em cada órgão às substâncias que lhes cabiam produzir, com grande destaque para a bile amarela e a bile negra, que constituíam ao lado do sangue e do muco, os quatro humores, dos quais dependia o estado de saúde do indivíduo. A movimentação do sangue venoso não se fazia por fluxo contínuo, mas dependia de um mecanismo comparado por Galeno ao das marés, com fluxos e refluxos. Durante o período de descidas, as veias absorviam os resíduos produzidos pelo organismo. O fígado seria o centro do sistema venoso e dele partia um grosso vaso – a veia cava – que conduzia sangue impuro para o ventrículo direito. Do ventrículo direito, através de outro vaso calibroso – a artéria pulmonar – o sangue era levado para os pulmões. Ali os resíduos se vaporizavam para serem eliminados na expiração. Parte do sangue chegava ao ventrículo esquerdo através de poros e canaliculos invisíveis existentes no septo interventricular. No ventrículo esquerdo o sangue entrava em contato com o ar que penetrava nos pulmões durante a inspiração e que era levado àquela câmara pelas veias pulmonares. Ao entrar em contato com o ar o sangue se impregnava dos espíritos vitais e por isso mudava de cor, tornando-se mais vermelho. Por intermédio da aorta, o sangue se dirigia ao cérebro e ali se impregnava dos espíritos animais, os elementos mais nobres da economia humana. Pelo mesmo mecanismo, comparável ao das marés, o sangue vitalizado se distribuía por todo o corpo.

Na concepção de Galeno, seguramente inspirada em Aristóteles, a principal função do coração era formação do calor corporal, fonte primária da vida, cujo mecanismo seria o seguinte: o ar que chegava aos pulmões em baixa temperatura era levado ao coração que funcionava como uma câmara de combustão. gerando calor pelo encontro do ar com o sangue. Cabia aos pulmões controlar o excesso de calor gerado, expelindo-o junto com os resíduos na expiração.

Por mais fantástica que nos pareça hoje a concepção de Galeno, ela prevaleceu por vários séculos e não há como negar sua engenhosidade e elegância, capazes de explicar tudo, sem deixar dúvidas, desde que se buscasse apenas explicação, sem se importar com a comprovação objetiva dos fenômenos que foi a base do trabalho de Harvey.

 

Concepção de Harvey

Como mostraram Britos e Décourtó, a obra de Harvey revolucionou a medicina, mas é justo relembrar algumas descobertas anteriores que começaram a demolir a concepção de Galeno que prevaleceu na medicina por 14 séculos.

O maior destaque deve ficar com Vesalius (1514-1564), que abalou os alicerces da concepção de Galeno, até então intocável, em sua magistral obra publicada em 1548, considerada por Oslerg o 

"maior livro médico já publicado", que recebeu o título em latim, como se usava na época, de "De Humani Corporis Fabrica", onde se encontrava descrita com precisão toda a anatomia do corpo humano, inclusive do sistema cardiovascular. Vesalius descreveu as artérias, as veias e a anatomia do coração, afirmando categoricamente não ter encontrado poros ou canalículos no septo interventricular 4 .

Servet (c. 1511-1553), embora fosse mais teólogo do que médico, realizou observações importantes sobre a circulação pulmonar, mas visava apenas uma melhor compreensão da natureza da alma, pois, de acordo com a Bíblia "a alma da carne é o sangue" (Lev. 17:11) e "o sangue é a vida" (Deut.12:23). Assim descreveu a circulação pulmonar: "A força vital provém da mistura, nos pulmões, do ar inspirado com o sangue que vem do ventrículo direito para o ventrículo esquerdo. Todavia, o fluxo de sangue não se dá, como geralmente se crê, através de poros do septo interventricular. O sangue flui por longos condutos através dos pulmões, onde sua cor se torna mais clara, passando de uma veia que se parece a uma artéria a uma artéria parecida com uma veia" 3, 4 .

As observações de Servet foram ignoradas pelos médicos, não só pelo apêgo às idéias de Galeno que ainda dominavam, mas também por terem sido publicadas em um livro de conteúdo religioso, intitulado Christianismi Restitutio", que tinha como tema central os mistérios da Santíssima Trindade. Vale a pena ressaltar que Servet foi acusado de heresia e condenado à morte em fogueira. Seus livros foram apreendidos e incinerados, salvando-se, contudo, três exemplares.

Colombo (c. 1516-1559), sucessor de Vesalius na cátedra de Anatomia da Universidade de Pádua, deixou em sua obra "De Re Anatomica", uma descrição da circulação sangüínea muito próximo à de Harvey. "Quando o coração se dilata", escreveu ele, "recebe sangue da veia cava no ventrículo direito e, ao mesmo tempo, o ventrículo esquerdo recebe o sangue misturado com ar por meio da artéria venosa e para este fim as membranas valvares são abaixadas, permitindo a entrada do sangue; em seguida, enquanto o coração se contra) estas se fecham de modo que o sangue fica impedido de fluir na mesma direção; no mesmo momento, as válvulas das grandes artérias, assim como as da veia arteriosa, abrem-se e deixam o sangue arejado passar, que se espalha pelo corpo ao mesmo tempo que o sangue natural (venoso) é levado aos pulmões". Mas, Colombo, mantinha-se fiel ao postulado galênico de que o fígado era o órgão central do sistema nervoso, perdendo a oportunidade de revolucionar os conhecimentos sobre a circulação sangüínea.

Outra contribuição importante foi a de Cesalpino (c. 1519-1603), na qual o conceito de circulação aparece claramente quando afirma que o sangue parte do coração e a ele retorna, sendo este o órgão responsável pela propulsão.

Sem dúvida, o principal ponto de apoio de Harvey foi a obra de Vesalius. Entre a publicação do "De Humani Corporis Fabrica" de Vesalius, em 1543, e o de Harvey, em 1628, passaram-se 85 anos e, neste período, calorosas discussões ocorreram entre os fanáticos seguidores de Galeno e os médicos que reconheceram de pronto a exatidão das descrições de Vesalius6 .

Além disso, Harvey tinha verdadeiro espírito científico. Partindo de conhecimentos anatômicos corretos e fazendo suas próprias observações, em cadáveres e vivisecções de diferentes espécies animais, pôde refutar toda a concepção de Galeno. Em seu pequeno livro (72 páginas em latim) de longo título (Exercitatio Anatomica de Motu Cordis Et Sanguinis Animalibus), publicado em Frankfurt, Alemanha, em 1628, fez uma verdadeira revolução científica no campo da medicina.

Conforme relata Garrison3 , Harvey foi o primeiro a empregar argumentos de ordem matemática para a compreensão de um fenômeno biológico, demonstrando que, pela quantidade e velocidade do fluxo sanguíneo, seria fisicamente impossível validar a teoria galênica e que a única explicação lógica seria a circulação do sangue em um sistema fechado 5 .

Contudo, a aceitação da proposta de Harvey pela comunidade médica não foi tão pacífica como poderia parecer. Somente depois que Descartes 7 a incluiu na 5ª parte do "Discurso do Método", a concepção de Harvey teve ressonância. Esta obra, publicada em 1637, teve profunda influência, ainda presente em nossos dias, no pensamento científico ocidental.

Por isso, consideramos que a melhor maneira de resumir as idéias de Harvey, é transcrever a descrição de Descartes, dando oportunidade para se saborear a linguagem de um cientista do século XVII (fig. 2).

... je veux mettre ici l’explication du mouvement du coeur et des artères, qui étant le premier et le plus général qu’on observe dans les animaux, on jugera facilement de lui ce qu’on doit penser de tous les autres; et, afin qu ‘on aft moins de difficulté à entendre ce que j’en dirai, jevoudrais que ceux qui ne vent point versés en l’anatomie prissent la peine, avant que de fire ceci, de faire couper devant eux le couer de quelque grand animal qui aft des poumons, car il esten tout assez semblabl e à celui d e l’homme, et qui’ils sefissent montrer les deuz chambres ou concavités qui y sont: premièrement celle qui est dans son côté droit, à laquelle répondent deux tayoux for larges, à savoir: la veine cave, qui est le principal réceptacle du sang, et comme le. tronc de l’arbre dont les autres veines du corps vent les branches, et la veine artérieuse, qui a été ainsi mal nommé, pour ce que c’est en effet une artére, laquelle, prenant son origine du cocur, se divise, aprés en être sortie, en plusieurs branches qui se vont répandre partout dans les poummons; puis celle qui est dans son côté gauche, à laquelle répondent en même façon deur tugaux qui vent autant on plus larges que les précédents, à savoir: I’artère veineuse, qui a été aussi mal nommée à cause que’elle n’est autre chose qu’une veine, laquelle vient des poumons, ou elle est divisée en plusieurs branches entrelacés avec celles de la veine artèrieuse et celles de ce conduit qu ‘on nomme le sifflet, par ou entre l’air de la respiration, et la grande artère qui, sortant du coeur, envoie ses branches par le corps. Je voudrais aussi qu’on leur montrdt soigneusement les onze petites peaux qui, comme autant de petites portes, ouvrent et ferment les quatre ouvertures qui vent en ces deux concavités, à savoir: trots à ltentrée de la veine cave, ou elles vent tellement disposées qu’elles ne peuvent aucunement empêcher que le sang qu’elle contient ne coule dans la concavité droite du coeur, et toutefois empêchent exactement qutil nten paisse sortir; trots à [‘entrées de la veine artèrieuse, qui étant disposées tout au contraire, permettent bien au sang qui est d ans cette concavité d e passer dans les poummons, mais non pas à celui qui est d ans les poummons d ‘V retourner; et ainsi deu:£ autres à 1’entrée de 1’artère veineuse, qui laissent couler le sang des poummons vers la concavité gauche du cocur, mais s’opposent à son retour; et trots d l’entrée de la grande artère, qui lui permettent de sortir du cocur, mais l’empêchent d’y retourner. Et il n’est point besoin de chercher d’autre raison du nombre de ces peaux, sinon que l’ouverture de l’artère veineuse, étant en ovale à cause du lieu ou elles se rencontrent, peut être commodement fermée avec deux, au lieu que les autres, étant rondes, le peuvent mieu:r étre avec trots. De plus, je youd ra:s qu’on leur.fit consid érerque la grand e artère et la veine artérzeuse vent d’une composition beaucoup plus cure et plus ferme que ne vent l’artère veineuse et la veine cave; et que ces d euz dernières s’élargissent avant que d’entrer dans le coeur, et y font comme deua: bourses, nommées les oreUles du coeur, qui vent composées d’une chair semblable à la sienne.... 7

A grande incógnita que ficou na concepção de Harvey é como o sangue passaria do sistema arterial para o sistema venoso. Talvez ainda sofrendo a influência das idéias do próprio Galeno, Harvey sugeriu que o sangue passaria das artérias para as veias através de "poros invisíveis" que deviam existir nos tecidos do corpo. Somente em 1661, usando o microscópio inventado por Leeowenhoek 5 , três anos antes, Malpighi descreve os capilares – na verdade os "poros invisíveis" – completando a concepção de Harvey.

Diante da grandiosidade da obra de Harvey  é justo considerá-lo, não só como o fundador da fisiologia, mas, também, como o Pai da Cardiologia.

As conseqüências das idéias de Harvey na prática médica tardaram, a partir das quads grandes avanços no conhecimento das doenças do coração ocorreram, inicialmente na Áustria, com destaque especial para as correlações anátomo-clínicas levada a efeito por Skoda no final do século XVIII, culminando com a invenção do estetoscópio por Laennac, em 1819, na França.

Todas as descobertas que constituem os fundamentos da cardiologia moderna buscaram suas raízes na concepção de Harvey; contudo, merecem referência especial as teorias anterógrada e retrógrada da insuficiência cardíaca que se baseiam integralmente na idéia de que a circulação sangüínea depende exclusivamente do trabalho do coração, tal como Harvey propôs há 362 anos.

 

Concepção de Rigatto

Em setembro de 1984, Rigatto publicou em Arquivos Brasileiros de Cardiologia 8 o trabalho "Os Seis Corações do Homem", um brilhante ensaio que ainda não teve a repercussão que merece.

Rigatto tome como ponto de partida o postulado de que a função primordial do sistema circulatório é assegurar a respiração celular. A partir daí, procurando integer os fenômenos intracelulares com o ecosistema em que vivemos, mostra as etapas que vão da captação de energia pelo planeta até sua liberação em cada célula como base dos fenômenos vitais.

Para isso, redefine o conceito de "coração", considerando como tal, toda cavidade sujeita a variações cíclicas de volume e provide de válvulas capazes de direcionar o fluxo do sangue nela contido. Fazendo uma revisão filogenética, do protozoário ao vertebrado. demonstra claramente que a evolução do sistema circulatório ocorreu com o propósito de haver transporte de oxigênio da maneira mais eficiente possível, tendo em vista o binômio distância-consumo. Ou seja, quanto maior o animal, maior a distância, maior a exigência circulatória. O progressivo fechamento do sistema vascular foi uma exigência desta evolução. Conjuntamente desenvolveu-se uma intrincada rede nervosa, surgiram as válvulas venosas e o sistema linfático, tornando-se cada vez mais complexa a circulação sanguínea. Ao longo da escala filogenética notáveis aperfeiçoamentos foram introduzidos no sistema circulatório, mas é possível reconhecer em diferentes estruturas anatômicas um ponto em comum, representado pela capacidade de propelir sangue. A elas denomina "corações acessóricos"8 .

Aspecto de suma importância na compreensão de sua concepção é o fato de que, uma vez instalado qualquer avanço funcional, sempre há a manutenção do mesmo nas espécies mais evoluídas. Por fim, indaga "O único progresso que parece ter sido implantado no sistema circulatório, ao longo de sua evolução filogenética e depois dele retirado, são os corações acessórios. Seria isso verdade?". Em seu modo de ver, não. Os corações acessórios apenas assumiram nova roupagem, mas continuam tendo importância vital na função circulatória-respiratória, sendo o "coração central" apenas uma de suas partes.

A partir destes princípios descreve seis corações no homem (fig. 3).
1) O "coração periférico" formado pelas veias valvuladas dos membros inferiores, ritmicamente comprimidas E pelos músculos que as cercam, quando estes se contraem.

2) O "coração abdominal" formado pela veia cava inferior, limitado pelas válvulas femorais mais altas e pela tricúspide, e ciclicamente comprimido e distendido pelos movimentos do diafragma.

3 ) O "coração ventricular direito" constituído pelo miocárdio ventricular direito, apoiado pelo átrio direito, limitado de um lado pela valva tricúspide e, de outro, pela valva pulmonar.

4) O "coração pulmonar" formado pelo circuito vascular pulmonar, limitado num extremo pela válvula pulmonar e, noutro, pela válvula pela valva pulmonar e, noutro, pela valva mitral, e sujeito às variações rítmicas de volume

5) O "coração ventricular esquerdo" constituído pelo miocárdio ventricular esquerdo, apoiado pelo átrio esquerdo, limitado, de um lado pela valva mitral e, de outro, pela valva aórtica.

6) O "coração arterial" constituído pela aorta e seus ramos, limitados, num extremo pela valva aórtica e, noutro, pelas primeiras válvulas venosas, é acionado pela retração elástica da parede arterial, ritmicamente, e pelas sístoles ventriculares.

Que contribuições poderá dar à cardiologia moderna a concepção de Rigatto?

A simples valorização dos movimentos do pé quando caminhamos num aclive, provocando contrações mais vigorosas dos músculos das pernas e com isto acionando o coração periférico, nos mostra com clareza uma adaptação circulatória para aumento do débito cardíaco.

As modificações que ocorrem durante o exercício físico 9-5 são melhor compreendidas quando se aplica a concepção de Rigatto e que podem ser esquematizadas:

– o coração periférico, pela maior eficiência da musculatura dos membros inferiores e o coração abdominal pelas mais amplas incursões diafragmáticas e mais fortes contrações da musculatura abdominal, asseguram maior retorno venoso; o coração pulmonar torna-se mais eficiente quando o fole torácico cria maior pressão negativa, facilitando o retorno venoso, além de comprimir o conteúdo pulmonar, impulsionando maior quantidade de sangue para o coração ventricular esquerdo; o coração arterial, em conseqüência da vasodilatação que ocorre durante o exercício, vai facilitar o trabalho dos corações ventriculares;

Com o progressivo condicionamento físico dado pelos exercícios, os corações ventriculares aumentam de peso e de eficiência para trabalharem em harmonia com os corações pulmonar, abdominal, arterial e periférico.

Tendo em conta estas modificações torna-se mais compreensível a melhora que ocorre nos cardiopatas, os quais, mesmo apresentando lesões importantes no miocárdio, ainda assim obtêm melhora significativa com o treinamento físico. Tal melhora, evidentemente, depende de maior participação dos demais corações, provocada pelo exercício, que culmina com a melhora da respiração celular 9,16,17 .

Sem dúvida, para a máxima eficiência circulatória, deve haver perfeito sinergismo dos seis corações. Assim, o músculo cardíaco, que corresponde aos corações ventricular direito e ventricular esquerdo, trabalha em estreita colaboração com os demais corações no que diz respeito aos mecanismos de pré e pós-carga. Daí se pode inclusive dizer que a contratilidade e a freqüência cardíaca, embora sejam propriedades intrínsecas do coração, estão sujeitas à interferência de vários fatores ligados ao sistema circulatório como um todo. Senão vejamos: o aumento do retorno venoso faz com que a pré-carga se eleve e, como conseqüência, quando o coração entra em falência, aumenta-se a força de contração ventricular. Por certo, isso se deve aos corações periféricos, abdominal e pulmonar que tentam suprir a claudicação de uma parte do sistema, na tentativa de manter sua finalidade última que é a respiração celular.

Como se sabe, a hipertensão arterial sistólica é fator de risco na falência do coração ventricular esquerdo. A razão disso poderia ser o inadequado funcionamento do coração arterial, em função da diminuição da retração elástica da aorta e dos grandes vasos que ocorre nas pessoas idosas, nas quais a proliferação fibroblástica é um dos componentes do processo de envelhecimento 9,18,19 . Mais ainda, o coração ventricular esquerdo, representado pelo ventrículo esquerdo, interliga-se diretamente com o coração arterial, formando um sistema biológico intimamente acoplado e com vários mecanismos de auto-regulação, cuja eficiência depende das propriedades de cada parte, influenciando-se reciprocamente. O mesmo se pode dizer do coração ventricular direito e do coração pulmonar em relação aos corações periférico e abdominal.

Levando em conta esta solidariedade do sistema circulatório justificam-se plenamente os rumos atuais do tratamento da insuficiência cardíaca.

A concepção de Rigatto fornece elementos, infelizmente ainda não quantificáveis, para se enfrentar as dificuldades na remoção da insuficiência cardíaca em certo número de pacientes, nos quais os digitálicos mostram-se ineficientes. Isso torna óbvio que sua ação terapêutica restringe-se aos corações ventriculares, os quais, mesmo tendo importância fundamental como principal bomba propulsora do sangue, não podem prescindir dos outros correspondentes do sistema. No que respeita aos diuréticos, por exemplo, além de diminuírem o volume plasmático, atuam na parede arterial reduzindo seu conteúdo de sódio que vai baixar a resistência periférica o que significa, na verdade, que atuam no coração arterial, com efeitos benéficos sobre o quadro da insuficiência cardíaca. Também, as drogas inibidoras da enzima de conversão e os vasodilatadores atuariam ao nível do coração arterial por mecanismo diferente, mas com o mesmo resultado, ou seja, pela redução da resistência periférica 9,20,22 .

Além do exercício físico, da hipertensão arterial e da insuficiência cardíaca, poderíamos fazer indagações sobre várias condições pouco investigadas do ponto de vista do sistema circulatório como um todo. Nesse cave estão as varizes e a insuficiência venosa que devem interferir no funcionamento do coração periférico, a obesidade que deve ter repercussão sobre os corações periférico e abdominal, a doença pulmonar obstrutiva crônica que, mesmo antes de causar "cor pulmonale", deve alterar a eficiência do coração pulmonar.

Muitos fatos estão começando a clarear, outros estão apenas delineados e um vasto campo se entremostra para investigações. Como o próprio Rigatto reconhece, é necessário desenvolver métodos que permitam quantificar a contribuição de cada um desses corações para que se possa emendar a fundo o sistema circulatório. A mensuração do fluxo de sangue nos diferentes segmentos vasculares, do volume sanguíneo, das variações das massas musculares em repouso e em movimento, além de vários outros parâmetros, permitirão a criação de modelos matemáticos, tal como fez Harvey há quase quatro séculos, só que agora, dispomos de computação eletrônica de dados que permite mensurações e correlações até há pouco tempo não cogitados 23 .

 

Referências

1. Castiglione A – História de Medicina, São Paulo; Cia. Ed- Nacional, 1947.

2. Entralgo PL – História de la Medicina. Madrid: Ed. Científico Médica, 1954.

3. Garrison FH – História de la Medicina. México: Ed. Interamericana, 1966.

4. Roger PB – Compendio de Historia de la Medicina, México, Prensa Medica, 1965.

5. Brito A de R – Harvey e a circulação do sangue. Portugal, Ed. Educação Nacional, 1944.

6. Décourt LV – O mecanismo de circulação do sangue. A verdade pela obra de Harvey. Arq Bras Cardiol, 1990; 54: 41-7.

7. Descartes R – Discours de la Méthode suivi des Méditations Metaphysiques. Paris, Ernest Flammarion, p. 31-2.

8. Rigatto M – Os seis corações do homem: um ensaio. Arq Bras Cardiol, 1984; 43: 149-60.

9. Hanson P – Os exercícios e o coração. Clínicas Cardiológicas de Norte América, Vol 5, n. 2,1987.

10. Leite PF – Aptidão Física, Esporte e Saúde. Belo Horizonte, Ed. Santa Edwiges, 1985.

11. Pini MC – Fisiologia Esportiva. Rio de Janeiro. Ed. Guanabara Koogan, 1978.

12. Ehsan AA, Hagberg SM, Hickson RC – Rapid changes in left ventricular dimension and mass in response to physical conditioning and deconditioning. Am J Cardiol, 1978:42: 52-6.

13. Shapiro LM – Physiological left ventricular hypertrophy. Br Heart J. 1984: 52: 130-5.

14. Schaible TF, Scheuer J – Cardiac adaptations to chronic exercise. Prog. Cardiovasc Dis, 1985:27:297.

15. Ellestad MV – Provas de Esforço. Ed. Cultura Médica, 1984.

16. Fink LI, WUson JR, Ferraro N – Exercise ventilation and pulmonary artery wedge pressure in chronic stable congestive heart failure. Am J Cardiol, 1986:57: 249-53.

17. Wilson JR, Martin JL, Schwartz D – Exercise intolerance in patients with chronic heart failure: Role of impaired skeletal muscle nutritive flow. Circulation, 1984; 69: 1070-87.

18. Duncan JJ, Farr JC, Upton J – The effect of aerobic exercise on plasma cathecolamines and blood pressure in patients with mild essential hypertension. JAMA, 1985:254: 2609-13.

19. Frader GE, Philips RCR – Physical fitness and blood pressure in school children. Circulation, 1983: 67: 405-12.

20. Smith TW, Braunwald E – The management of heart failure. In Heart Diseases. WB Saunders Co., 1984.

21. The Captopril-Digoxin Multicentric Research Group. Comparative effects of therapy with captopril and digoxin in patients with mild to moderate heart failure. JAMA, 1988; 259: 539- 44.

22. A Symposium: Congestive Heart Failure. Advances in Treatment. Am J Cardiol, 1989; vol. 63, nº 8.

23. Norris DE, Skilbrek CE, Hayward AK, Torper DM – Microcomputers in clinical practice. London: John Wiley & Sons, 1985.

 

Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás.
Correspondência: Celmo Celeno Porto
Rua 83. nº 603 – S. Sul - 74000 – Goiânia,GO