Caminhos da Cardiologia

O Mecanismo da Circulação do sangue. A verdade pela obra de Harvey 

 

Luiz V. Décourt
Coordenador
Max Grinberg
Editor

 

Nesta seção serão publicados estudos sobre épocas ou individualidades, em suas relações com a cardiologia. Os trabalhos não comparecerão regularmente em todos os números da Revista, pois dependerão de inúmeras circunstâncias operacionais. Eles serão executados a convite da coordenadoria de Caminhos da Cardiologia ou como colaboração espontânea. E fizemos votos para que esta participação cresça em número e em qualidade.

A História da Ciência tem, hoje, grande vivência em múltiplos setores da atividade intelectual, mercê de suas características, de seu interesse e de suas implicações. E, assim, deve atuar a História da Cardiologia.

Desejamos que a leitura de seus textos seja considerada não apenas uma forma de lazer, a preencher horas disponíveis, mas lição fornecedora de documentos de real interesse para nosso trabalho, Ela pode, e deve, ser uma escola , no ensinamento das dúvidas e das dificuldades enfrentadas pelos investigadores que nos precederam, assim como na compreensão de sua criatividade, de sua originalidade e de sua influência futura. O conhecimento de momentos históricos, possui, mesmo, função didática, nas informações que nos fornece sobre idéias expressivas efecundas, sobre erros eventuais, sobre metodologia de trabalho e até sobre problemas pessoais de pesquisadores do passado. E, também, sobre caracteres de determinadas épocas, em suas limitações intrínsecas e em suas perspectivas de criação.

O estudo da História é também manifestação de obrigatório reconhecimento aos que nos precederam, ou seja aos responsáveis pelo estado da Ciência que desfrutamos hoje, e que a criaram em condições muitas vezes desfavoráveis.

 

"The greatest error we can make will be to fail to recall the lesson of careful observation and logical interpretation for which we are indebted to William Harvey".
William Harvey and modern cardiology, Editorial, Br Heart J. 1978;1:4. (4000 aniversário do nascimento de Harvey)

 

William Harvey nasceu em Folkestone, na Inglaterra, em primeiro de abril de 1578, atingindo, então, ainda jovem, um século que irá se distingüir pela originalidade e pela criatividade da investigação em vários ramos da Ciência. Desde os estudos iniciais teve a oportunidade de obter sólida cultura humanística 1-3 . Aos 15 anos entra no Caius College, em Cambridge, conseguindo o grau de Bachelor of Arts em 1597. Seu aprendizado foi amplo, abrangendo conhecimentos práticos de latim e de grego, assim como aspectos básicos de matemática, de física, de filosofia e de lógica 2 .

Dirige-se, depois à Universidade de Pádua, então altamente respeitada pela tradição e pela categoria de seus mestres, amigos e atuais. Assim, dentre outros, os anatomistas Vesalio, Fallopio, Fabrizio D’Acquapendente. Nela desenvolve estudos médicos que se prolongam até 1602. Os dados conhecidos sugerem uma elogiável posição como estudante, pois em seu diploma consta um adendo 2 salientando que ele "chegou a ultrapassar até mesmo a grande esperança que os professores tinham depositado em sue pessoa". Naquela data retorna à Inglaterra, obtendo o grau de Doutor em Medicina pela Universidade de Cambridge. É eleito pare o College of Physicians em 1607 e dois anos após passa a integer o corpo do St. Bartholomew’s Hospital . Dadas as características já mencionadas, os estudantes de Pádua sentiam-se atraídos pela anatomia pelo resto da vida. E isto ocorreu com Harvey. Torna-se professor de Anatomia e de Fisiologia no College of Physicians e desenvolve amplas e sucessivas investigações sobre embriologia, anatomia comparada e fisiologia da circulação em diferentes grupos de animais (insetos, répteis, anfíbios, peixes, pássaros, mamíferos). E relaciona os dados obtidos ao observado em dissecções de cadáveres humanos. Este trabalho torna-se favorecido por ato do rei Carlos I que Ihe cedeu parques reais, com múltiplos animais, para suas experiências.

Suas atividades levam-no progressivamente a elevadas posições sociais e a encargos de docência científica. E também a trabalhos paracientíficos e, mesmo, curiosos. Torna-se médico de Jaime I (1618) e, depois, de Carlos I (l625) e é designado para participar das "Lumleian Conferences" patrocinadas pelo College of Physicians. Em uma ocasião 2 é chamado pare examinar mulheres consideradas "feiticeiras" por já antiga tradição em Lancashire, desde que, eventualmente, elas seriam condenadas por falsos testemunhos (quais seriam os "verdadeiros"?). Ao contrário da inacreditável aceitação da "bruxaria" por alguns médicos da época, recusa participar do embuste e, em parte por sua atuação , são perdoadas quatro de sete "feiticeiras". Curiosamente, recebe, em 1635, ordem real para fazer exame necroscópico de indivíduo (Thomas Parr) considerado como tendo vivido 152 anos e nove meses 2 . E, por comentários ulteriores, parece ter sugerido que o centenário poderia até viver mais tempo caso tivesse permanecido em sua terra natal e não se transferido para o ambiente mais sofisticado de Londres.

Em 1628, portanto aos 50 anos de idade, publica sua obra máxima EXERCITATIO ANATOMICA DE MOTUCORDIS ET SANGUINIS IN ANIMALIBUS4 , na qual expõe, em conjunto, suas observações conclusivas sobre a dinâmica da circulação sanguínea, já objeto de notes iniciais e de conceituações básicas em Lumleian Lecture de período bem anterior (16 de abril de 1616). Tratava-se de pequeno volume, com 72 páginas, escrito em latim (de forma quase ilegível 1 ), e impresso em Francoforte sem os cuidados gráficos desejáveis (fig. 1). O próprio Editor admitiu, em comentário final, que compositores e corretores do texto perturbaram-se diante do tema estranho e reconhece, então, a impressão defeituosa.

De acordo com as normas da época a obra 4 é dedicada ao Sereníssimo e Invencível rei Carlos, em uma comparação das características da pessoa real ("fundamento de seus reinos, Sol de seu Microcosmo, Coração do Estado"), com as do coração dos animais: Cor and. malium fundamentum est vitse, princeps omnium, Microcosmi Sol, a quo omnis vegetatio dependet, vigor omnis & robur emanat ("O coração dos animais é o fundamento da vida, o primeiro de todos, o Sol do Microcosmo, do qual derive toda a energia, emanam toda a vitalidade e toda a robustez").

Cerca de quinze anos antes da morte inicia-se ambiente trágico em torno de sua vida, durante a Guerra Civil inglesa, dadas suas relações com a casa real 1, 2 . Sua residência é invadida e são destruídos importantes papéis com notas científicas sobre o desenvolvimento embrionário e sobre anatomia comparada de animais. Dirige-se, com a Côrte, a Oxford, onde permanece pouco tempo porque a cidade é conquistada em 1646.

Pouco a pouco afasta-se, então, da vida pública e é martirizado por crises recorrentes, dolorosas e limitadoras, de gota úrica, perante a qual se automedicava com água gelada 5 . Em 3 de junho de 1657 vem a falecer por processo vascular cerebral, honrado e respeitado por colegas eminentes, ainda criticado acerbamente por incompetentes, mas sem viver, em toda a extensão, o grande triunfo de sua obra.

O trabalho de Harvey veio permitir o reconhecimento de uma situação não totalmente ignorada durante séculos, mas observada apenas de forma parcial e incompleta por vários pesquisadores. De início deve ser ressaltado o fato, quase incrível, da ignorância dos médicos antigos sobre a circulação sangüínea. Como se compreende, os traumas, os ferimentos, as amputações, são altamente informadores sobre aspectos funcionais das artérias e de veias, e essas trágicas ocorrências foram companheiras permanentes do homem, em tantos períodos ricos em guerras, em acidentes e em crimes.

Por outra, a gigantesca sombra de Galeno (c.130-200, A.D.) imobilizou o pensamento médico por cerca de 14 séculos. Foi ele, sem dúvida, homem de gênio, mas suas concepções sobre o aparelho cardiovascular, cheias de erros, tornaram-se dogmas, aceitos sem discussão e, particularmente, sem verificações objetivas por todo o mundo ocidental. Como é sabido, para ele, o fígado era formador de sangue através de manipulação de alimentos. E dele partiam veias para irrigação dos órgãos, constituindo o sistema venoso ou "sangüíneo" em contraste ao sistema arterial, considerado "aéreo" ou "espirituoso" (ou seja, contendo "espírito"). A veia cava inferior se dirigia às extremidades e a veia cava superior ao coração direito. A partir deste, duas vidas ofereciam-se ao fluxo: a da "veia arteriosa" (hoje, artéria pulmonar) que levaria corrente nutridora aos pulmões e a de "poros" invisíveis, existentes no septo interventricular, através dos quais o sangue atingiria o ventrículo esquerdo. Nesta câmara, ocorreria sua mistura com o ar, tornando-se "pneumatizado". Desta forma, certa quantidade de sangue, trazendo o "espírito natural" proveniente do fígado, seria acumulado no ventrículo direito e, através dos "poros", estimulante do calor inato do organismo. Este ventrículo seria, pois, a sede da transformação do sangue venoso em sangue "espirituoso" (spiritus receptaculum), ou seja, o local onde ele se tornaria enriquecido pelo "espírito vital".

Além dos enganos ligados às idéias gerais sobre a circulação, três aspectos falhos básicos devem ser ressaltados na hipótese de Galeno: a) em primeiro lugar, a ausência de concepção de uma real "circulação", desde que todo o volume de cada remessa de sangue seria consumido pelos tecidos e substituído então pelo que se formas-se no fígado; b) em segundo, o não reconhecimento da função pulmonar na transformação do sangue venoso em arterial e c) em terceiro, a resistência em aceitar o coração como órgão musculoso e propulsor, dada sua movimentação independente da vontade.

Essa concepção persistiu até o século XVI, quando, sob influência das idéias inovadoras do Renascimento, indivíduos cultos e curiosos voltaram-se progressivamente para a observação adequada dos fenômenos da natureza e encaminharam-se para expressivas descobertas. Mas até a época de Harvey ainda persistiam, em quase todos os centros, as noções restritas dos antigos.

Parece certo 3, 6 que, eventualmente, um ou outro observador tenha reconhecido determinadas lacunas nas proposições de Galeno, mas, em verdade, em todas as Universidades ocidentais suas idéias eram dogmas. O próprio Fabrizio (1537-1619) já observara em 1574, as valvas venosas, mas não reconhecera seu real papel. Ainda preso às idéias galênicas, acreditava 7 que serviram para regular essencialmente o volume de sangue e não sua direção, evitando o acúmulo do fluido na periferia.

Naquele século, e no seguinte, grandes pesquisadores reformaram ou criaram conceitos sobre astronomia, sobre física, sobre fisiologia, em verdadeiro trabalho de renascimento da Ciência. Foi neles que se afirmaram, dentre tantas, as personalidades de Galileu, de Kepler, de Vesalio, de Cabon, de Descartes e até um charlatão genial, Paracelso. Foi época de intensas atividades individualistas, mas que transformaram a visão do Universo.

Surgem, então, pesquisas algo fragmentárias, mas já expressivas, sobre aspectos da circulação sangüínea. E, dentre elas, em particular as de Servet, as de Colombo e as de Cesalpino. Miguel Servet (1509 ou 1511-1553) foi indivíduo curioso, filósofo, teólogo, místico e crente em astrologia, sempre insatisfeito com o mundo e até com Deus, embora defensor da Igreja. Dedicou-se, ainda, à geografia, às ciências naturais e à medicina. Em 27 de outubro de 1553 foi queimado vivo, em Genebra, por ordem do Calvino, junto com seu estranho livro Christianismi Restitutio (Restauração do Cristianismo) que conteria heresias. Nesta obra, quase incidentalmente, mas de forma clara e lógica3 descreve a circulação pulmonar. Ressalta, em criteriosa observação, que a artéria pulmonar é muito volumosa para ser apenas vaso encarregado da nutrição dos pulmões. Mostra que o sangue do coração direito não passa ao esquerdo através de poros septais, mas chega ao território pulmonar pela "veia arteriosa". E dele sai pela "arteria venosa", sendo atraído ao ventrículo esquerdo pela diástole cardíaca. O sangue atinge esta região já misturado com o ar inspirado, livre então de vapores fuliginosos e sede do espírito vital 3 .

Realdo Colombo (1516-1559), talvez sem conhecer as idéias de Servet, realiza vivissecções e, em obra publicada quase no fim da vida (De Re Anatomica), reconhece os movimentos do coração, nega a presença de comunicações interventriculares e chega a admitir um fluxo em circulação. Estabelece, também, que o sangue é conduzido aos pulmões pela "veia arteriosa" e que a "artéria venosa" foi constituída para que ele, misturado ao ar, atingisse o ventrículo esquerdo.

Um investigador respeitável foi Andrea Cesalpino (1519-1603), médico, botânico e teólogo, que forneceu dados seguros sobre a circulação pulmonar e sobre a corrente sangüínea. Tem sido admitido, mesmo, ser dele a expressão "sanguinis circulatio", indicando que o sangue parte do coração e a ele retorna. A real expressividade de sua contribuição sem dúvida de alto mérito tem sido discutida. Ainda recentemente (1939-1940) surgiram artigos bem documentados defendendo a tese de que foi ele o verdadeiro descobridor da circulação do sangue. Determinadas verificações 8 , entretanto, reduzem a categoria de sua contribuição, sugerindo que apenas realizou descrição anatômica, sem efetiva compreensão do estado funcional do circuito sangüíneo como estabelecido por Harvey. Além disso, em atitude ainda parcialmente galênica8 , admitiu que o sangue atinge o ventrículo esquerdo por duas vias: através do septo e através dos pulmões.

Todas essas verificações foram valiosas e, indiscutivelmente, trouxeram noções úteis ao trabalho de Harvey. Elas se salientaram em épocas em que ainda persistiam debates subtís e estéreis sobre a função do coração e nas quais observações eventuais sobre as moléstias cardíacas eram restritas e pouco expressivas. Nas quais médicos mantinham-se ainda presos à crença de tempos passados, de que o coração é relativamente imune a doenças. Mesmo nas obras mais expressivas não se encontrava um conceito lógico e coerente sobre o que representava a "circulação", sendo admitidos movimentos lentos e irregulares do sangue, em velocidade e em sentido.

As pesquisas de Harvey foram, entretanto, concludentes, permitindo estabelecer, com visão clara, os postulados básicos da mecânica da circulação 9 . E suas conclusões foram definitivas, em concepção não-modificável, da qual apenas esteve ausente o papel dos capilares. Baseado em observações cuidadosas e em experiências expressivas demonstrou uma ocorrência fundamental na vida animal, apenas parcialmente antevista por outros pesquisadores. Conforme tem sido afirmado em com total justiça Harvey não apenas mostrou como provou a modalidade hemodinâmica da circulação sangüínea. E a conclusão de sua obra, mais que uma descoberta, foi uma revolução10 .

Deve ser ressaltado que as provas fornecidas não dependeram de aquisição de aparelhagem original ou de novas técnicas até aí desconhecidas , mas de um raciocínio coerente, lógico e construtivo. Esta verificação bastaria, por si só, para expressar o que realizou, pois o que descreveu é o que admitimos hoje, sem necessidade de outros comentários. Torna-se oportuna, entretanto, uma análise de certos pormenores de um trabalho que evidencia criatividade e capacidade de observação. Neste estudo abordaremos, em seqüência compreensível, suas informações sobre características das cavidades cardíacas e sobre propriedades de artérias e de veias.

Em sua obra ressalta que, ao contrário do que pensava Aristóteles, quase todos os animais possuem coração. Não apenas os grandes, com sangue vermelho, como também os muito pequenos, os quase exsangues, crustáceos, moluscos, lesmas, caranguejos, lagostas, etc. No decorrer do texto, formula princípios básicos sobre o aparelho circulatório, desde aspectos estruturais e funcionais do coração até os do campo pulmonar e da rede vascular.

Em síntese, podemos agrupar esses princípios em seis grandes conclusões. 
a) No último capítulo do livro expõe suas observações sobre a anatomia do coração. Reconhece a existência de pequenos músculos, como "linguazinhas carnosas", ora ocupando as paredes do órgão, ora se integrando nestas e no septo. No homem elas predominam no ventrículo esquerdo e são mais numerosas nas câmaras ventriculares que nas atriais, onde nem sempre estão presentes. Essas formações guardariam relação com a constituição corporal, sendo mais volumosas em indivíduos fortes e musculosos. Ressalta, ainda, "como são grandes as variações individuais".

Essas cuidadosas observações, focalizando "o que se vê no coração", fornecem real apoio à sua concepção definitiva sobre o papel do órgão.
b) No corpo central da obra (capítulo VIII) comprova a presença de um movimento "circular", com fluxo centrífugo nas artérias e centrípeto nas veias e que analisará mais adiante. É levado a essa denominação pelas mesmas razões que conduziram Aristóteles a escolher esse nome para o ciclo do ar e da chuva. Evidencia que, dada a grande quantidade de sangue mobilizada pelo coração, em determinado período de tempo, seria impossível sua elaboração, renovada, repetida e rápida, pelo fígado. O fenômeno só poderia ser explicado pela concepção de que o líquido se movimenta em circuito permanente. Não seriam concebíveis fases de perda e de reentrada de sangue, mas era imperativa a admissão de um ciclo, com ida e com retorno. E esse fluxo, que se processa "de modo contínuo e sempre igual", é mobilizado pela contração cardíaca.
c) Após estudo minucioso da estrutura do coração, evidencia os caracteres das contrações de átrios e de ventrículos. O coração apresenta, em sua revolução, quatro movimentos distintos em relação à sede e ao tempo; dois pertencem aos átrios e dois aos ventrículos e, para cada tipo de câmara, eles são simultâneos. Ao contrário do que admitido pelos antigos é a sístole e não a diástole a fase ativa do órgão: "não é na diástole que o coração exibe vigor, mas na sístole; é nesta que ele desenvolve sua tensão, sua eficácia, sua força".

Reconhece ainda o papel ativo dos átrios (segundo idéias anteriores de Riolan), com movimentos que iniciam o ciclo cardíaco. Elas são "os motores iniciais do sangue, em particular a direita". Há, portanto, como que uma antevisão da seqüência da estimulação cardíaca.

Pode ser admitido 10 que Harvey talvez tenha sido influenciado pelo conhecimento da bomba hidráulica de duas valvas, desenvolvida em fins do século XV e início do XVI, e utilizada para sugar água de minas profundas.
d) Removendo todos os vestígios das idéias de Galeno, mostra que o sangue não passa do ventrículo direito ao esquerdo através de "poros" que, em verdade, não existem. A transformação do sangue venoso em arterial processa-se no leito pulmonar, onde ele recebe o "espirito vital". Reconhece, aliás, por raciocínio lógico, e confirmando a concepção de Servet e de Colombo que o calibre da "veia arteriosa" (artéria pulmonar) é muito grande para que ela seja apenas condutora de fluido nutritivo aos pulmões. 
e) Por observação seqüente caracteriza o funcionamento de artérias e de veias, mostrando que aquelas se enchem e se distendem por "propulsão enérgica do sangue provocada pela contração dos ventrículos". Com grande precisão evidencia que as artérias se distendem porque se enchem (como odres ou bexigas) e não se enchem porque se distendem (como foles). Um só fator é o responsável pela pulsação de todas as artérias do corpo, ou seja, a contração do ventrículo esquerdo; da mesma forma, a sístole da câmara direita atua sobre a "veia arteriosa".

Dado o sentido da corrente sangüínea, considera o papel das válvulas sigmóides, que "foram criadas para se oporem, nos ventrículos, ao retorno do sangue já evacuado". Elas formam, no orifício inicial da aorta e no da veia arteriosa, quando cerradas, "uma linha triangular, análoga à produzida por mordida de sanguessuga".

Em trecho famoso evidencia que as veias trazem, de todos os membros e de modo contínuo, o sangue para o coração. Em demonstração simples e expressiva comprova que, à compressão, os segmentos distais das veias se engurgitavam (Fig. 2). Esse movimento decorre do pulso arterial, que se origina, por sua vez, da propulsão do coração. Esclarece, ainda, o papel das válvulas venosas, não destinadas a impedir que a massa de sangue venha a se acumular nas regiões inferiores, mas sim a manter o fluxo centrípeto e a evitar seu refluxo.
f) Como decorrência de todos os fenômenos conclui, definitivamente, que não existem dois sistemas circulatórios independentes, mas um só movimento, integrado em um circuito.
g) Ao lado dessas verificações, sobre a dinâmica da circulação, fornece ainda dados precisos sobre a circulação fetal. Em rápido comentário, e reconhecendo a satisfatória descrição de aspectos estruturais do coração do feto feita por Galeno, corrige suas inexatidões sobre a fisiologia circulatória embrionária. Demonstra que, nessa fase, ocorre apenas uma circulação, pois os átrios se comunicam entre si e o mesmo ocorre com as grandes artérias da base. O sangue passa do átrio direito ao esquerdo e da artéria pulmonar à aorta (pelo canal arterial), fugindo dos pulmões, pois não é por eles que o feto respira.

Verifica-se, pois, em conclusão, que, de todo o aparelho circulatório, apenas não reconheceu os capilares, que estabelecem as ligações entre os sistemas arterial e venoso, e que só mais tarde serão descritos por Malpighi. Parece, mesmo, provável" que certas dúvidas, expressas por seu adversário Riolan, sobre a possibilidade de nutrição dos tecidos pela rápida movimentação do sangue, tenham suscitados a noção ulterior do "meio interno".

Além disso, como já acentuado 8 , o que também atrai em Harvey é que o médico sempre caminha com o fisiologista. Assim, na exposição de "conseqüências" do movimento circulatório e que também comprovam a concepção básica são analisadas mobilizações de agentes mórbidos no organismo, atuação de medicamentos aplicados sobre a pele, fenômenos metabólicos sucessivos.

Na perspectiva atual pode-se reconhecer que Harvey era essencialmente anatomista e escreveu obra anatômica. Mas, em suas mãos a anatomia adquiriu nova dimensão, tornou-se "anatomia animata", isto é, fisiológica. E, dessa fase em diante, esta passou a associar-se inseparavelmente àquela. Qualquer explanação fisiológica só poderá ser aceita se anatomicamente possível 2 .

Essa enorme fonte de informações, baseadas em observações atentas e repetidas, após numerosas vivisecções e necropsias, concentra-se em 72 páginas de texto, rico em lógica, em raciocínio, em precisão. E que exigiram quase 20 anos de trabalho.

O próprio Harvey reconheceu as dificuldades enfrentadas, ao mencionar, no capítulo inicial do texto, que procurou a verdade "não em livros ou em obras de outros, mas em autópsias". E que essa empresa foi verdadeira-mente penosa. Chega a admitir que a tarefa foi tão árdua e tão cheia de dificuldades (Rem ardua plane, & difficultatibus plenam) que quase foi levado a admitir, como Fracastorio, que apenas Deus poderia conhecer os movimentos do coração.

Após a publicação de sua obra enfrentou Harvey duas modalidades essenciais de crítica: uma, de menor significação, a de que teria sido pouco reconhecido a seus antecessores e, outra, realmente lamentável, a de que estaria publicando inverdades.

A leitura de seu texto evidencia, entretanto, que se refere, com respeito, a autores antigos. Assim, considera Galeno um "gênio divino e Pai da Medicina"; reconhece em Fabrizio D’Acquapendente, "habilíssimo anatomista e venerável ancião", o primeiro a descrever as válvulas venosas e em Colombo, "este sábio anatomista", o fornecedor de dados sobre a circulação pulmonar.

O panorama realmente crítico 1-3, 6, 8, 12 desenvolveu-se por atitudes de contemporâneos, medíocres ou competentes, mas indissoluvelmente presos a idéias antigas, então indiscutíveis e veneradas. As restrições nasceram por cega obediência à tradição que impunha repulsa ao que era moderno. Dentre os críticos destacaram-se dois membros da Faculdade de Medicina de Paris. O mais idoso, Jean Riolan, homem competente, afirmava 6 que para se explicarem diferenças entre os dados das dissecções e as idéias de Galeno, seria mais aceitável reconhecer que a Natureza tinha se modificado através dos tempos que admitir que este tinha se enganado. O outro, Guy Patin, erudito e culto, mas violento e desrespeitoso, agredia todos os inovadores pretendendo falar em nome da Faculdade. Com esse espírito declarou que a teoria de Harvey era "paradoxal, inútil à medicina, falsa, impossível, ininteligivel, absurda e nociva à vida do homem’’ 13 . Uma afirmação explicável por partir de quem somente admitia terapêutica por sangrias e/ou purgativos. Apenas o primeiro mereceu resposta de Harvey.

Nessa triste fase recebeu o ápodo de circulator, termo latino significando impostor ou charlatão.

Para o bom nome da ciência sabemos, entretanto, que múltiplas vozes, realmente credenciadas, ergueram-se, ressaltando a alta categoria do trabalho pioneiro e definitivo. E elas partiram não apenas da Inglaterra, como da Alemanha, da Dinamarca, da França, da Holanda. O próprio Descartes apoiou o mecanismo proposto, embora ainda algo atado a certas minúcias do passado. Não aceitou o conceito de força motora da massa sangüínea, porque, segundo a tradição do calor cardíaco ("calor primordial"), concebia o coração como um condicionador térmico 7 .

Outra face da situação refere-se à efetiva prioridade do trabalho de Harvey diante das verificações de Servet, de Colombo e, particularmente, de Cesalpino. Conforme já mencionamos, ainda recentemente foram citadas 3 publicações atribuindo a este a descoberta da circulação do sangue. Em outras ocasiões ocorreram manifestações de descabido patriotismo, na Itália 5 , invocando o mesmo fato. Não há dúvida, entretanto, que, em grande número de casos, o que ocorreu foi ausência de leitura integral do livro de Harvey por parte dos contestadores.

Uma análise pormenorizada dessas situações ultrapassa as finalidades deste artigo. E acredito suficiente o conhecimento dos aspectos já expostos para que não se admita qualquer dúvida sobre a prioridade, a singularidade e a lógica global do esquema proposto.

Conforme sentença de Herrick3 , "nenhum resumo do livro de Harvey pode lhe fazer justiça. Ele deve ser lido para que se conheça o espírito cientifico que o impregna e para que se compreenda porque, merecidamente, ele é colocado tão alto". Desejo acentuar que posso fornecer testemunho pessoal sobre essa apreciação. Mesmo já favoravelmente prevenido por informações de tantos, foi com surpresa e admiração crescentes que avancei na leitura do texto de Harvey, em traduções atuais. Uma impressão profunda perante diversas características: as observações atentas e expressivas, a solidez com que documenta as afirmações e, em particular, o raciocínio preciso e lógico, que nos orienta no entendimento das fases sucessivas através das quais foi sendo construída a sua doutrina.

Como já afirmado várias vezes, não há exagero em se admitir que a Cardiologia Moderna, em toda a sua amplitude, iniciou-se com a publicação de Harvey. Com ela obteve-se o afastamento definitivo das discussões estéreis sobre teorias hipotéticas, dos intermináveis diálogos sobre condições descritas e não comprovadas, das sutilezas, sempre renovadas, do raciocínio escolástico e, até, de propostas baseadas em considerações metafísicas. Em verdade, não apenas evidenciou as bases da circulação, como iniciou nova fase em investigação biológica, fundamentada então em verificações objetivas que caracterizam a ciência experimental. Forneceu princípios orientadores para futuras buscas científicas. Assim, normas para estudos de anatomia e de embriologia, em suas características próprias e em seus aspectos comparativos no reino animal; assim, pontos de apoio para pesquisas ulteriores sobre condições fisiológicas regionais e globais (inclusive dos fenômenos respiratórios) e, portanto, para a compreensão de processos relacionados à atividade contrátil do miocárdio e à dinâmica da circulação.

Como lucidamente acentou um historiador médico 14 , os cientistas, ao considerarem o coração como uma bomba, abriam a via do que seria uma interpretação mecânica de processos fisiológicos, ou seja, do que envolve conceitos de hidrodinâmica e, muito de perto também, princípios paralelos, como elasticidade e fricção. E, sem dúvida, ainda, suas informações atuaram como fundamentos para eclosão dos dados de observação clinica, de farmacologia, de anestesia, que surgiriam mais tarde 5 .

Sabemos, mesmo, que a descoberta de Harvey exerceu influência até em campos de investigação muito afastados de suas cogitações. Assim, no século XVII, quando ocorreu o verdadeiro nascimento da geologia (como a entendemos hoje), os estudantes dessa disciplina, sob o impacto do novo conhecimento, chegaram a conceber a terra como um corpo vivo, atribuindo-lhe uma circulação, representada então, pela água 16.

Em conclusão, uma análise seguramente desapaixonada e imparcial permite admitir que a EXERCITATIO ANATOMICA DE MOTU CORDIS representou uma revolução no pensamento biológico e um marco no caminho da investigação médica.

 

Referências:

1. Bigerist HE-WiUiam Harvey, In The Oreat Doctors. A biographical history of Medicine. New York: W. W. Norton & Company, 1933: 138-145.

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3. Nerrick JB-A short history of Cardiology. 8pringfleld, Baltimore: Charles C. Thomas, 1942: 23.

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5. Zührbach K-O descobrimento da circulação sangüinea por William Harvey. Actas Ciba 1938: 8-14.

6. Castiglioni A-A History of Medicine. New York: Alitred A. Knopf, 1941:515.

7. Papp D-Introducciõn, In Harvey G-De Motu Cordis (Trad. espanola). Buenos Aires: Editorial Universitária, 1970: 5-34.

8. Laubry JB-Aperçu historique de la découverte de la circulation sanguine, ID Harvey G-Étude anatomique du mouvement du coeur et du sang chez les animaux (Trad. fran,caise). Paris: G. Doins, 1950: 11-54.

9. Chávez I-História de la Medicinal Los momentos culminantes de la cardiologia. Conferencia I Congr. Nacional Cardiologia de Venezuela. Caracas, 1969.

10. Hamilton WF, Richards DW-The output of the heart, In Fishman AP, Richards DW-Circulation of blood. Men and Ideas. New York: Oxford University Press, 1964: 71-126.

11. Bernardes de Oliveira A-A Evolução da Medicina até o inicio do século XX. São Paulo: Livraria Pioneria Editora, 1981: 267-273.

12. Guyénot E-Découverte de la circulation du sang, In Taton R (Dir)-Histoire Oenérale des Sciences, tome n, La Science Moderne. Paris: Presses Universitaires de France, 1958: 366.

13, Darenberg Ch-De la circulation du sang et de son histoire, In La Médecine. Histoire et Doctrines. Paris: Didier et Cie, 1865: 270-289.

14. King LS-The Philosophy of Medicine. The early eighteenth century. Cambridge and London: Harvard Univesity Press, 1978: 64.

15. WiUiam Harvey and modern cardiology (Editorial). Br. med. J. (n. 6116),1978: 803-804.

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Instituto do Coração do Hospital das Clínicas-FMUSP. 
Correspondência: L. V. Décourt-Instituto do Coração. 
Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44, CEP 05403
São Paulo, SP.