Caminhos da Cardiologia

História da Cirurgia Cardíaca Brasileira

Enio Buffolo
Presidente da SBCCV

 

Apresentação

A cirurgia cardíaca brasileira constituiu inquestionavelmente um capítulo especial e de destaque dentre as contribuições científicas da cultura brasileira.

Desde seu inicio, e principalmente a partir da introdução da circulação extra-corpórea, participou com mínima defasagem das principais conquistas dos paises, do primeiro mundo.

A visão especial e salutar dos pioneiros da cirurgia cardíaca brasileira de fazer seus próprios equipamentos, próteses e órteses, permitiu um desenvolvimento extraordinário, com baixo custo, o que foi de fundamental importância para a extensão dos benefícios da terapêutica a maior contingente de pacientes. Esta característica destacou a cirurgia cardíaca brasileira dos outros paises sul-americanos e de muitos paises europeus, permitindo o desenvolvimento de tecnologia própria onde foi exercitada com brilhantismo a reconhecida criatividade nacional.

Ao longo dos anos as contribuições volumosas em qualidade e quantidade fizeram com que os cirurgiões brasileiros participassem como espectadores privilegiados, e muitas vezes como atores, do grande teatro das contribuições científicas internacionais, merecendo com justiça o respeito de seus colegas de outros paises. A leitura atenta deste trabalho comprovará esta assertiva.

Para esta posição de destaque muito contribuíram os pioneiros identificados nesta obra, que aliaram qualidades raras como a inteligência associada a capacidade de trabalho, uma vez que com freqüência estes atributos são excludentes e não somatórios. Este exemplo de exercício da criatividade, aliado à dedicação integral ao trabalho, constituiu um legado salutar da primeira geração da cirurgia cardíaca no Brasil e influenciou os discípulos diretos, justificando a continuidade das contribuições.

Pertencemos a uma geração privilegiada que teve a oportunidade de vivenciar o nascimento, adolescência, e maturidade de uma especialidade cirúrgica que desenvolveu todas estas etapas em pouco mais de 35 anos, permitindo unia apreciação fiel dos fatos relevantes e uma indiscutível cultura, desenvolvida com a vivência dos mesmos.

Nada mais justo, pois, que reunir a seqüência. dos marcos principais da evolução da cirurgia cardíaca no Brasil em uma publicação. A Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, entendendo que o relato dos acontecimentos resgatará nosso passado recente e servirá de parâmetro para julgamentos futuros, resolveu assumir este compromisso e indicou o Prof Iseu Affonso da Costa para escrever esta obra.

A leitura do livro, que inclui o relato analítico e descritivo, ficou, a nosso ver, agradável e, mais do que isto, apropriada à realidade dos fatos.

Para atingir estes objetivos muito contribuiu a moderação, isenção e o espírito crítico do Prof. Iseu, qualidades estas reconhecidas, por todos, assim como sua participação ativa em toda esta evolução. Certamente na elaboração destes relatos, além da coleta de dados, muitas vezes, bastou evocar reminiscências.

Testemunhamos durante o desenvolvimento do livro o cuidado com que foram tomadas as informações baseadas ora em consulta a dados oficiais, ora ao seu arquivo pessoal, e, mais do que tudo, em entrevistas com os que fizeram apropria história, objeto da publicação.

A Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular agradece profundamente o trabalho realizado pelo Prof Iseu Affonso da Costa e oferece esta obra a seus associados para consulta, meditação e paradigma.

Certamente, haverá visões e julgamentos pessoais, que tiveram ótica particular no destaque e seqüência dos acontecimentos, mas este fato é perfeitamente esperado e justificável, uma vez que de acordo com a filosofia de Kant o homem se coloca sempre como o epicentro dos acontecimentos, independentemente da relevância dos fatos.

 

1-Introdução

Para delinear a história da cirurgia cardíaca brasileira, desde seus dias mais remotos, procuramos situá-la no contexto mais amplo da prática medica e cirúrgica no país.

O exercício da arte de curar, no Brasil, somente começou a melhorar seu ordenamento com a chegada da família real portuguesa, em 1808. Até àquela época, na colonia e mesmo na metrópole, a organização era precária e muito reduzido o número de praticantes licenciados.

Os órgãos controladores eram a Real Junta do Protomedicato de Lisboa, e seus delegados coloniais.

Estes delegados do Físico-Mor, em conjunto com as Câmaras Municipais, expediam as licenças, provisões e cartas, zelavam pela fiscalização do exercício profissional e procediam os exames de habilitação.

Na realidade, a Medicina não era uma profissão unificada. Os Médicos, cirurgiões e barbeiros constituíam corporações distintas.

Como não havia universidades ou escolas médicas, exceto em Coimbra, profissionais de formação superior, os médicos ou físicos, eram raríssimos. Concentravam-se nas principais cidades e detinham os postos oficiais.

Ao lado dos físicos ou médicos, havia os cirurgiões, cirurgiões-aprovados ou cirurgiões-barbeiros, que eram licenciados após prestarem exames na metrópole ou no Brasil e comprovarem a freqüência, por quatro anos em um hospital.

Aos cirurgiões era concedida licença para o exercício da cirurgia, oficio manual que, considerado subalterno ao dos médicos, era reservado a pessoas de baixa situação social, muitas vezes cristãos-novos. Como os físicos eram poucos, os cirurgiões concorriam com eles, exercendo toda a medicina, constituindo a maioria dos praticantes.

Em fins do século XVII começou a diferenciação entre cirurgiões-barbeiros, e barbeiros. A estes, eram relegadas operações mais simples, como sangrias, sarjas, aplicações de bichas ou ventosas, extrações dentárias, além de barbear e cortar o cabelo. Também submetiam-se a exame e, muitas vezes, arvoravam-se em médicos.

Ainda assim, o número reduzido de praticantes dava oportunidade a ação dos boticários e seus aprendizes, alem de anatômicos e entendidos.

Com a vinda da família real portuguesa, em 1808, esta situação começa a modificar-se. Inicia-se, então, o ensino formal da medicina e da cirurgia, com a fundação das Academias Médico-Cirúrgicas da Bahia e Rio de Janeiro.

Em 1832, depois da Independência, as Academias foram transformadas em Faculdades de Medicina, por decisão da Regência Trina.

Os cirurgiões continuavam, porem, em situação de inferioridade em relação aos médicos. Finalmente em 1848, um decreto legislativo considerou habilitados para exercitarem livremente em todo o Brasil qualquer dos ramos da ciência médica os antigos cirurgiões-aprovados e os formados nas Academias Médico-Cirúrgicas.

Era o fim da discriminação entre médicos e cirurgiões, passando estes a gozar das mesmas regalias e status social.

Ate esta época, a cirurgia limitava-se às amputações, redução de fraturas e luxações, ligaduras de artérias periféricas, suturas de feridas de órgãos internos, drenagem de abscessos, avivamento de fistulas e cauterização de ferimentos e era, muitas vezes, praticada no domicílio dos doentes.

Somente com o aperfeiçoamento da anestesia e da antissepsia, na segunda metade do século XIX, criou-se o que se pode considerar a Clínica Cirúrgica, passando a ser realizadas nos hospitais intervenções mais complexas.

As publicações médicas na Bahia e Rio de Janeiro, geralmente dos professores das Faculdades de Medicina, começam registrar operações mais elaboradas, sendo que muitas das teses de doutoramento da época referem-se a processos cirúrgicos.

Um marco histórico desta fase foi a ligadura da aorta abdominal realizado em 1842, no Rio de Janeiro pelo professor Candido Borges Monteiro, Visconde de Itauna, para tratar um volumoso aneurisma da artéria ilíaca externa. A operação, que havia sido realizada apenas três vezes no inundo, terminou com hemorragia fatal, consequente a infecção, doze dias depois.

0 Rio de Janeiro, sede da Corte Imperial, tornou-se logo o centro mais importante dos progressos culturais, científicos e médicos.

Oliveira Fausto, nas suas "Chroniques médicales du Brésil", de 1902, informa que Antonio José Peixoto havia praticado no Rio de Janeiro, em meados do século XIX, oito paracenteses do pericárdio.

Esta é, aparentemente, a primeira notícia em nosso país sobre procedimentos cirúrgicos relacionados ao coração.

A punção pericárdica era ainda uma novidade controversa. Fora praticada pela primeira vez por Larrey em 1810, mas não era aceita por todos os mestres da medicina.

Em 1882, Theodor Billroth escreveria "A paracentese do pericárdio hidrópico é uma operação que me parece chegar bem perto do que alguns cirurgiões consideram a prostituição da arte e outros chamam de frivolidade cirúrgica".