Caminhos da Cardiologia

Willem Einthoven de um começo árduo ao prêmio Nobel.

 

Rubens Maciel
Porto Alegre, RS

 

O presente artigo nos fornece dados valiosos sobre um cientista que todos reverenciamos, conscientemente ou não, em nossa atividade clínica diária. Um pesquisador que por mais de trinta anos trabalhou em um método de exame credenciado a revolucionar a cardiologia. E que, após as conquistas de Harvey, de Lannec, de Roentgen, atingiria um dos mais altos degraus em nossa especialidade. Um homem consciencioso e pertinaz que buscou sempre, com paciência, com rigor e com objetividade o aperfeiçoamento de sua técnica de investigação.

Por isso, ela resistiu a críticas e a incompreensões oriundas, particularmente de autores germânicos (Koch-Momm, Molz) e contra as quais eu mesmo tive ocasião de me manifestar em um distante passado.

O autor apresenta uma biografia expressiva e atraente. Socorrendo-se de documentos originais e pouco conhecidos, nos informa sobre aspectos curiosos da personalidade de Einthoven, em suas atividades esportivas; sobre a categoria do investigador na profundidade de seus trabalhos, mesmo iniciais, no terreno da fisiologia; sobre a criatividade de suas buscas em eletrofisiologia e, ainda -ocorrência não menos significativa - sobre seus altos escrúpulos e sua austeridade no decorrer da carreira universitária.

Esta grande lição do Prof. Maciel deve ser lida atentamente e nos fornecer, ainda uma vez, momentos de renovada meditação sobre o que um sábio nos trouxe, de fecundo e de permanente, com o estudo das pequenas correntes elétricas que se desenvolvem no coração.

 

Of the different types of investigation that have been undertaken none has had a more profound effect upon cardiac diagnosis, and none has yielded greater returns than that concerned with the electrical currents produced by the heart-beat.

Frank N. Wilson 1

 

Willem Einthoven nasceu em 21 de maio de 1860, na cidade de Semarang, capital da província de Java Central, na ilha de Java, naquela época incluída nas Índias Orientais Holandesas e hoje integrante da República da Indonésia. Seu pai, Jacob Einthoven, nascido na Holanda e lá diplomado em medicina, serviu como oficial médico do exército colonial holandês e terminou radicando-se em Semarang, para onde fora transferido ainda no exercício de suas funções no corpo médico militar. Viúvo, casou em segundas núpcias com Louise M.M.C. de Vogel, filha de um alto funcionário holandês. Desse matrimônio nasceram seis filhos, sendo Willem o terceiro. O pai faleceu quando o menino tinha apenas seis anos. Quatro anos depois, a mãe, em companhia dos filhos, de um irmão e de alguns dependentes, retornou à Holanda e fixou residência em Utrech, onde a família iria permanecer por longo tempo (fig. 1 ).

Einthoven fez os cursos primário e secundário em Utrecht, completando este último aos dezoito anos. Os recursos da família haviam sofrido sérias perdas com a mudança, e o sustento de todos dependia do trabalho não só do tio, vindo de Semarang, como do de Willem, que era o mais velho dos rapazes. Em face das dificuldades ele, ao inscrever- se em 1879 no curso de medicina da Universidade de Utrecht, solicitou e obteve um contrato com o Exército, que lhe assegurava o custeio dos estudos e um pequeno salário suplementar durante os mesmos, a troco do com promisso de, a exemplo de seu pai, após a formatura servir como médico militar nas colônias.

Como estudante, o jovem Einthoven teve atuação destacada, não só no terreno intelectual, como no esportivo. Dotado de robusta compleição e com acentuado gosto pelos exercícios físicos, achou sempre tempo, em sua pesada agenda de estudos e trabalho, para a prática de esportes e da vida ao ar livre, cujos benefícios procurou difundir em colaborações para o jornal dos estudantes. Seus esportes prediletos eram o remo e a esgrima, tendo sido fundador da União de Remo dos Estudantes de Utrecht e da Sociedade Olímpia de Ginástica e Esgrima, da qual chegou a ser presidente. Levando avante suas atividades nessa área, organizou torneios esportivos entre as universidades holandesas, o que se constituiu em novidade para a época. Sua perícia como esgrimista de sabre e espada assegurou-lhe posição destacada não só naqueles torneios, como fora do meio estudantil.

No curso de medicina, seu desempenho chamou a atenção de alguns dos professores de mais renome. Um dos primeiros foi o anatomista Koster que, naquela ocasião, investigava problemas de mecânica articular. Havendo Einthoven, em um de seus exercícios físicos, sofrido uma fratura no punho direito, passou a acompanhar, com redobrado interesse, as pesquisas de seu mestre. Das reflexões que fez a respeito resultou seu primeiro trabalho científico: "Algumas observações sobre o mecanismo da articulação do cotovelo", no qual discutia o papel de cada um dos dois ossos do antebraço nos movimentos do mesmo, particularmente na pronação e na supinação, e analisava a influência de determinados músculos nesses movimentos. Apresentado pelo autor numa reunião interna, o trabalho foi levado por Koster à Real Academia de Medicina, onde, como informa de Waart2 , "chamou extraordinariamente a atenção pelos conhecimentos de matemática e pela visão clara dos problemas de mecânica envolvidos no assunto". Vertido para o francês, o trabalho foi publicado numa revista holandesa.

Dos professores de seu curso médico, o que exerceu maior e mais decisiva influência sobre Einthoven foi Frans Cornelis Donders, oftalmologista de renome internacional e professor titular de Fisiologia da Universidade de Utrecht. Foi inclusive uma observação casual do mestre que deu origem à dissertação doutoral de seu aluno e admirador. Em uma de suas viagens, Donders deteve o olhar nas faixas coloridas do papel de parede de seu quarto de hotel e verificou que, vistas de certa distância, as faixas de determinada cor pareciam destacar-se do plano comum e criar um pequeno avanço em relação às vizinhas. O oftalmologista interessou-se pelo assunto e chegou a publicar trabalhos a respeito. Estimulado pelo mestre, Einthoven reinvestigou o fenômeno e fez dele o tema de sua tese de conclusão do curso médico, sob o título de Stereoscopie door Kleurverschil (Estereoscopia por diferença de cores). A dissertação, com apenas 36 páginas e 4 ilustrações, consistiu em uma análise óptica e matemática do problema, conduzida com raro brilho, e quando submetida à Faculdade de Medicina, em 4 de julho de 1885, recebeu a menção cum laude e foi republicada, em alemão e francês, em revistas médicas.

Nesse mesmo ano faleceu A. Heynsius, professor de Fisiologia na Universidade de Leiden, a mais antiga das universidades estatais holandesas, fundada em 1575. É de supor que o posto fosse muito disputado, mas quase nada se sabe a respeito. O convite inicial foi dirigido a A.I. Moens, antigo assistente de Patologia em Leiden e, posteriormente, assistente de Heynsius, em cujo laboratório se destacou por estudos sobre pulso arterial. Nos anos imediatamente anteriores ao falecimento do titular, Moens já havia abandonado a pesquisa básica e iniciado uma clínica privada em outra cidade; por essa ou outras razões, recusou-se a retornar ao meio universitário. Aproveitando a oportunidade e usando seu grande prestígio científico e profissional, e também o fato de ser professor da mesma matéria em Utrecht, Donders pleiteou a vaga para seu aluno, contrapondo o talento, preparo e vocação científica, já demonstrados pelo candidato, à sua pouca idade e formatura recente. Einthoven sentiu a delicadeza da situação e, embora já aceito pelo Conselho Universitário, solicitou uma declaração de anuência assinada por todos os professores titulares da Faculdade de Medicina; foi só depois de obtido esse documento que concordou com sua nomeação.

Nessa ocasião ele já era Doutor em Medicina, mas não obtivera ainda a licença para o exercício profissional. Julgou o jovem professor que não deveria apresentar-se a seus alunos sem preencher antes esse requisito, o que foi alcançado apenas em janeiro de 1886. Assim sendo, somente em 24 de fevereiro do mesmo ano assumiu Einthoven oficialmente o cargo de professor de Fisiologia e Histologia da Universidade de Leiden. As duas matérias estavam unidas numa só cátedra e ele continuou a lecioná-las até 1906, quando Histologia passou a ter professor privativo.

A aula inaugural do novo professor versou sobre "A doutrina das energias específicas", assunto já debatido por Johannes Müller, o grande mestre alemão de Fisiologia, e por vários outros fisiólogos eminentes. Matéria de atualidade na época, girava em torno da especificidade ou não das sensações, e da possível existência de uma energia específica para cada órgão dos sentidos, resultante do trabalho de percepção e independente da natureza do estímulo provocador da sensação. Questão extremamente complexa e controvertida, foi analisada por Einthoven, em extensão e profundidade, com capacidade crítica e conhecimentos que, no dizer de contemporâneos, eram surpreendentes numa pessoa tão jovem.

Dois meses depois de sua ascensão ao professorado, Einthoven casou com sua prima irmã Frédérique Jeanne Louise de Vogel. O casal teve três filhas e um filho; este último, como engenheiro, veio a ser um valioso colaborador do pai. Seus vencimentos como professor permitiram-lhe afinal uma folga financeira, que aproveitou para resgatar os 6.000 florins de seu compromisso com o Exército, liberando-se assim do contrato para médico militar nas colônias.

O laboratório herdado de Heynsius era relativamente pobre e mal provido, mas o novo professor conseguiu aos poucos desenvolvê-lo e equipá-lo de forma a atender às necessidades do ensino e da investigação. Wiggers3 , que visitou Einthoven em 1926, descreveu a área de pesquisas do laboratório como "peculiar, com cinco fortes pilares de cimento, que sustentavam as bancas para onde eram trazidos os galvanômetros escolhidos, mediante guindastes presos por roldanas ao sólido travejamento superior, por cima do qual se estendia o telhado de vidro". Com o passar dos anos e a divulgação das pesquisas lá realizadas, o Laboratório de Fisiologia da Universidade de Leiden passou a desfrutar de um prestígio cada vez mais sólido e tornou-se local de visita obrigatória para os cardiologistas e eletrofisiologistas que vinham à Europa.

As primeiras pesquisas de Einthoven nesse laboratório estavam ligadas a fenômenos respiratórios: pressão intratorácica e pressão dos gases na cavidade pleural. Estudou também a bexiga natatória dos peixes. Passou depois, com um método novo, a estudar a musculatura brônquica e o papel da mesma e do nervo vago nas crises de asma.

Não tardou muito que sua atenção se voltasse para problemas de eletrofisiologia. Naquela época, para tal finalidade o melhor aparelho de registro em uso nos laboratórios de pesquisa era o eletrômetro capilar de Lippmann, concebido por este em seu estágio no Laboratório de Kirchoff, em Heidelberg, em 1873, e dado a conhecer ao mundo científico numa publicação do próprio Gabriel Lippmann, em 1875.

Pelo seu papel na linha de pensamento que levou ao eletrocardiógrafo propriamente dito, talvez seja oportuna uma descrição sumária do eletrômetro de Lippmann. Tratava-se de um tubo de vidro, terminado por uma extremidade capilar muito fina, e cheio de mercúrio. A ponta do capilar mergulhava verticalmente em uma cuba contendo ácido sulfúrico diluído, o qual repousava sobre uma camada inferior de mercúrio. Os eletródios eram ligados ao ácido sulfúrico e ao mercúrio, respectivamente, e as variações de potencial estabelecidas entre eles modificavam as forças de tensão superficial e faziam com que o menisco de separação, entre o mercúrio e o ácido sulfúrico, se deslocasse para cima ou para baixo no tubo capilar. A zona de separação dos dois líquidos era fortemente iluminada, e a imagem do menisco, grandemente aumentada por meio de lente apocromática, era projetada sobre uma fenda vertical, por trás da qual deslizava, em velocidade constante, uma placa fotográfica. Embora apresentasse a vantagem de ser aperiódico, o sistema tinha o grande inconveniente de uma inércia exagerada.

Einthoven dedicou-se a esse método de investigação com o rigor e a tenacidade que o caracterizavam. Analisou cuidadosamente a curva produzida pelo amortecimento do aparelho e elaborou um roteiro para a correção matemática da distorção inerente ao processo. A comparação entre as curvas corrigidas, que obtinha então, e os traçados eletrocardiográficos com galvanômetros (fig. 2), dá uma justa medida da sua capacidade e do extraordinário domínio, que possuía, das características físicas e limitações de seus instrumentos.

A inércia do aparelho não permitia uma análise adequada da ativação auricular. Em relação aos ventrículos, os fenômenos elétricos imprimiam ao menisco duas deflexões principais, que Einthoven designou inicialmente com as letras P e Q, e que correspondiam ao que ele mesmo veio a chamar mais tarde R e T. Einthoven padronizou a velocidade de registro, a técnica de estandardização e a tomada de derivações, empregando, nesse primeiro período, a derivação mão direita - mão esquerda. Indo mais longe, obteve, em 1893, os primeiros registros dos ruídos cardíacos, em coelhos.

O eletrômetro capilar foi o instrumento principal de suas pesquisas durante cerca de uma dezena de anos. Sua inércia e o tempo que era necessário gastar para a correção matemática das curvas tornavam cada vez mais evidente a necessidade de uma nova solução técnica. Einthoven dedicou-se ao estudo do galvanômetro de bobina de Desprez e d’Arsonval e calculou que as características do aparelho melhorariam, para o seu objetivo, à medida que diminuís-se o número de espiras da bobina. Chegou assim a calcular que a solução melhor seria apenas meia volta do fio.

O passo seguinte foi idear uma forma de transformar esta meia espira em um fio único estendido entre dois suportes e submetido ao campo eletromagnético de um eletroímã. Uma solução semelhante havia sido preconizada pelo engenheiro francês Ader, em 1897, a propósito do registro de corrente para cabos submarinos. Por este motivo, alguns autores atribuem a paternidade da criação do galvanômetro de corda a Ader e consideram Einthoven como um continuador que aperfeiçoou o dispositivo inicial. Fishman e Richards, referindo-se a Einthoven em 1964 4 , ainda afirmam: "Sua realização inicial fundamental foi o reconhecimento do valor potencial do novo e elegante galvanômetro de Ader, e sua própria construção de um modelo modificado, melhorado e mais sensível". O assunto está muito bem exposto por de Waart e o seu depoimento robustece a convicção de que Einthoven desconhecia o trabalho de Ader quando elaborou sua própria solução. O dispositivo de Einthoven não só apresenta características próprias inconfundíveis, como possui uma superioridade técnica incontestável sobre o aparelho elaborado por Ader. Einthoven já demonstrara conhecimento e imaginação que o credenciavam plenamente para essa tarefa e o desenvolvimento que veio a dar posteriormente ao problema, levando-o a limites ainda não ultrapassados hoje, são um indício mais a favor da idéia de que tenha trabalhado independentemente de Ader.

O ano em que Einthoven deu publicidade à criação do seu galvanômetro de corda é erroneamente indicado, mesmo em livros de História da Cardiologia, como sendo 1903. A data correta é 1901, quando seu artigo: "Um novo galvanômetro" foi incluído num livro jubilar de homenagem a Bosscha, e publicado numa revista científica holandesa, editada em francês 5 . O erro resultou da pouca divulgação pela citada revista, ao passo que, em 1903, um artigo com maiores informações: "O registro galvanométrico do eletrocardiograma humano, bem como uma revisão do eletrômetro capilar em fisiologia" 6 , publicado em alemão na mais prestigiosa revista de fisiologia da época e traduzido para o francês no ano seguinte, teve grande repercussão e chamou a atenção dos principais centros de fisiologia do mundo. O autor começa analisando as similitudes e diferenças dos traçados obtidos com os dois aparelhos. A seguir, enumera vantagens do galvanômetro de corda sobre o eletrômetro capilar: maior aperiodicidade e sensibilidade, melhor padronização, proporcionalidade entre as variações da corrente e as deflexões, supressão dos fenômenos de atrito, isolamento mais perfeito, melhor nitidez da imagem e maior simplicidade de manejo. O trabalho reproduz eletrocardiogramas (ECG) de 6 pessoas e enuncia as convenções adotadas por Einthoven e usadas correntemente até hoje, em relação às linhas de amplitude e de tempo. A velocidade do papel fotográfico foi ajustada para 25mm/s e foi usado o fotoquimógrafo proposto por Garden, que projetava uma linha vertical mais grossa após cada quatro linhas mais finas, valendo a abcissa entre duas linhas verticais 0,04/s. Uma lente com raias horizontais projetava linhas separadas entre si de 1mm e o galvanômetro era ajustado de modo a que a excursão de 1mm correspondesse a 10 -4 volt. Einthoven não desconhecia que mesmo a curva do galvanômetro de corda poderia necessitar uma correção matemática, para os grandes deslocamentos, mas considerava tal correção desnecessária, por ser a distorção pequena.

Era natural que o novo método de investigação fosse de imediato aplicado ao estudo das doenças. Os problemas de ordem prática não eram, porém, fáceis de resolver. O 1º eletrocardiógrafo de corda de Einthoven possuía características que não permitiam seu transporte para o hospital. O peso (600 libras = 270kg) e a complexidade da assistência técnica impunham sua localização no laboratório de fisiologia, junto dos elementos mais categorizados para manejá-lo. Doutra parte, o deslocamento dos doentes do hospital era difícil e, para muitos deles, impossível. Por sugestão de Bosscha, foi tentada e conseguida a ligação, por fios condutores, entre o hospital da Universidade e o laboratório de fisiologia, na distância de 1,5km. Com sua seriedade habitual, Einthoven analisa os pormenores da realização prática do empreendimento, para o qual foram utilizados os fios subterrâneos da rede telefônica de Leiden. O arranjo não era ideal e no trabalho de Einthoven está incluído um gráfico mostrando o efeito, sobre a corda, do chamado extemporâneo de um assinante. O uso do telefone não era tão difundido como hoje e foi possível trabalhar eficientemente e obter numerosos "telecardiogramas". Os pacientes eram examinados no hospital, com as extremidades imersas em cubas com uma solução condutora, e o registro era feito no laboratório.

O artigo 7 que descreve os primeiros resultados dessa tentativa, publicado originalmente em francês, em 1906, em uma revista de primeira linha, aumentou muito o interesse pelos trabalhos de Einthoven, pois incorporava os clínicos ao que poderia ter parecido, até então, uma árida pesquisa de eletrofisiologia.

Com o uso do eletrômetro capilar de Lippmann, Einthoven já observara que, das 10 derivações propostas por Waller, havia algumas favoráveis e outras desfavoráveis. Um exemplo das primeiras seria a ligação entre as duas mãos, e um exemplo das segundas, a ligação entre os dois pés. Com o galvanômetro de corda, a seleção se processou rapidamente e Einthoven passou a usar apenas as três derivações hoje ainda empregadas como padrão ou clássicas. Ao fazê-lo, imediatamente percebeu que "une fois que l’on connait les courbes obtenues 1) en reliant la main droite à la main gauche, 2) en reliant la main droite au pied gauche, il doit être possible de déduire de ces deux-lá la courbe résultant d’une dérivation par la main gauche et le pied gauche" 8 . A postulação da chamada "equação de Einthoven" precedeu, pois, à hipótese do triângulo eqüilateral e não se originou dos pressupostos teóricos implícitos nesta última, e sim da convenção estabelecida pelo próprio Einthoven, ao definir o sentido das deflexões em relação à polaridade, e os pontos de localização das conexões donde se obtinham as três derivações. A leitura atenta dos trabalhos de Einthoven teria demonstrado que D 2 =D 1 +D 3 por construção e teria evitado muitas discussões estéreis e mal fundamentadas a respeito.

A parte clínica começa incluindo uma curva, em D3, de um caso de lesão mitral, com insuficiência predominante, segundo sua opinião, e duas curvas, também em D3, de insuficiência aórtica. Chama a atenção para o predomínio de R na primeira e de S na segunda (a noção de eixo elétrico não fora ainda estabelecida), correlaciona esses achados com possível hipertrofia do coração direito e do coração esquerdo, respectivamente, mas adverte, prudentemente, que "não se deve usar a forma do eletrocardiograma, pelo menos exclusivamente, para diagnosticar alterações valvulares, porque o ECG é expressão da contração do músculo cardíaco e só se altera na medida em que uma falha no funcionamento valvular exerça influência sobre tal contração".

Einthoven inclui traçados de estenose mitral e chama a atenção para as alterações de P nestes casos. No 1º deles, sua descrição do aumento de duração e dos entalhes de P e a correlação que estabelece com uma modificação da aurícula esquerda não deixariam nada a desejar ainda hoje. O 2º traçado parece corresponder a uma situação clínica mais complexa; os diagnósticos clínicos eram do Prof. Nollen e não de Einthoven e refletiam a limitação dos conhecimentos clínicos da época.

Einthoven aproveita uma boa parte do texto para discussão de distúrbios de ritmo, o capítulo que seu condiscípulo, compatriota e amigo Wenckebach iria desenvolver de forma tão magistral. Ele se ocupa das extra-sístoles, com e sem onda de pulso correspondente, do bigeminismo, do pulsus inaequalis et irregularis (fibrilo-flutter) e dos bloqueios aurículo-ventriculares, apresentando curvas de bloqueio A-V parcial obtidas no cão por excitação do vago direito. É feita breve menção às modificações do ECG em conseqüência de alterações da posição do coração.

Como já referimos, Einthoven fez seus primeiros estudos de fonocardiografia com o eletrômetro capilar. Em 1904, recomeçou pesquisas nesse campo, desta vez com o galvanômetro de corda, ao qual era ligado um microfone de características especiais, que descreve em seus trabalhos. Em 1907, com Wieringa e Snijders, descreve o aparecimento, em seus traçados, de uma 3ª bulha cardíaca, cuja produção procurou interpretar. Por meios puramente clínicos e sem conhecer os trabalhos de Einthoven, Gibson, na Inglaterra, havia chegado à identificação da mesma bulha, a 3ª bulha cardíaca, que bem podemos chamar bulha de Gibson-Einthoven.

Em 1908, Einthoven publica "Considerações adicionais sobre o eletrocardiograma" 9 , talvez o mais extenso de seus artigos, dividido em cinco capítulos, e que abrange estudos eletrocardiográficos na rã, no cão e no homem. Declara contar já com cerca de 5.000 ECG e, embora recordando a contribuição do eletrômetro capilar, salienta a facilidade, a precisão e a amplitude trazidas à pesquisa pelo galvanômetro de corda. Confessa que "alguns fenômenos passaram a ser vistos de outra forma, e algumas opiniões anteriormente formuladas a respeito do significado das diferentes ondas terão de ser modificadas".

Assim, ficou definido que a onda P representa com exclusividade a ativação atrial e a onda Q, comprovadamente, faz parte do complexo ventricular. Para tanto, recorreu aos traçados em que as sístoles atriais eram mais numerosas que as ventriculares. Em relação ao ventriculograma, discute o que representam o QRS e a onda T, e analisa as modificações de forma de cada um. No que se refere à geração e propagação do estímulo, baseia-se em trabalho de V. Tawara, de dois anos antes. Vislumbra possibilidades de diagnóstico eletrocardiográfico das hipertrofias ventriculares, e muitos outros pormenores, que não cabe sequer enumerar.

Nos anos seguintes, Einthoven continuou a aperfeiçoar o seu galvanômetro de corda, melhorando-lhe a sensibilidade mediante a obtenção de cordas cada vez mais finas. Ao mesmo tempo, prosseguiam ativamente as pesquisas no campo das aplicações clínicas do ECG e na investigação teórica sobre a distribuição de potenciais e as influências que sobre ela se exercem. Einthoven estudou de forma especial a influência dos movimentos respiratórios e das mudanças de posição do corpo sobre o ECG. Esses trabalhos levaram-no à concepção de um eixo elétrico cardíaco e à integração de todas as suas análises na mais famosa e difundida de suas concepções, o chamado esquema do triângulo eqüilátero. Uma excelente exposição de seu pensamento, até essa altura, é encontrada no trabalho: "Sobre a direção e o valor manifesto das variações de potencial no coração humano e sobre a influência da posição do coração na forma do eletrocardiograma"10 , que publicou, com G. Fahr e A. de Waart, em 1913. Após breve introdução, os autores começam analisando a influência do ato respiratório sobre o ECG, ilustrando-a com gráficos simultâneos de ECG e pneumograma. Passam a analisar as relações entre as três derivações usuais e a comparação entre elas a partir de curvas simultâneas por construção. Discutem a seguir o esquema do triângulo eqüilátero e a direção e valor manifesto dos potenciais resultantes (fig. 3). Continuam, estudando a influência das mudanças de posição do corpo sobre o ECG e também os efeitos do esforço. Correlacionam achados eletrocardiográficos com alguns estados patológicos e terminam por um apêndice em que é feita a discussão trigonométrica, de todos conhecida, sobre a direção e tamanho das projeções do eixo elétrico sobre os lados do triângulo eqüilátero.

O esquema do triângulo eqüilátero foi, de todas as contribuições de Einthoven, a que despertou os mais vivos debates e os posicionamentos mais díspares, desde os que a aceitavam como o valioso coroamento de mais de uma dezena de anos de pesquisas pioneiras, até os que negavam às derivações de Einthoven qualquer valor científico e chegavam ao extremo de aconselhar seu abandono.

No ano anterior, em visita a Londres, Einthoven proferiu uma aula sobre "As diferentes formas do eletrocardiograma humano e sua significação" 11 , que por haver sido apresentada à Chelsea Clinic Society é habitualmente mencionada como Chelsea Lecture. Nela começou dizendo que a aplicação da eletrocardiografia no exame clínico produz informações válidas seguindo duas vias diversas: o estudo das relações de tempo entre a atividade auricular e a ventricular, e o exame das variações de forma do ECG. Explicou que discutiria no momento apenas a segunda alternativa e assim o fez ao longo dos 82 itens abrangidos pelo trabalho. Ao concluir, manifestou sua satisfação em recordar ali "que o eletrocardiograma humano fora pela primeira vez registrado por um fisiólogo de Londres, Augustus Desiré Waller, o qual introduzira também o termo ECG em ciência, e que o Dr. Thomas Lewis, cujas amplas pesquisas haviam sido coroadas com tão excepcional sucesso, fora a primeira pessoa na Inglaterra a aplicar a eletrocardiografia à pesquisa clínica".

Logo depois e ainda como resultado da necessidade de correlacionar duas ou mais derivações, Einthoven procurou e conseguiu construir galvanômetros com duas e mais cordas. Seu 1º artigo a respeito, com Bergansius e Bijtel: "O registro simultâneo de fenômenos elétricos com dois ou mais galvanômetros e sua aplicação na eletrocardiografia", foi publicado em holandês em 1915 e, no ano seguinte, desenvolvido nos Pflüger’s Archiv 12 , com pormenorizada discussão dos problemas ópticos e elétricos, onde mais uma vez se evidenciam os conhecimentos de física e matemática do autor.

Com um instrumento de pesquisa tão sensível e versátil, era natural que Einthoven não se limitasse à eletrofisiologia do coração, mas fizesse incursões bem sucedidas no domínio da visão (eletroretinograma), dos potenciais de ação dos nervos, do tono muscular, etc. Seu último aperfeiçoamento do aparelho, conseguido graças à colaboração de seu filho, foi a criação do galvanômetro de corda de vácuo, com o qual levou ao máximo a sensibilidade  do instrumento. Em seus últimos trabalhos, Einthoven discute as modificações do vector cardíaco, em direção e grandeza, durante o ciclo cardíaco, integrando-se na linha de pensamento que veio dar origem à moderna vectocardiografia.

Fora da eletrofisiologia, a segunda linha de trabalho, à qual retornava de quando em quando, foi a fisiologia ocular, com pesquisas sobre índice de refração, ilusões óticas, acomodação, etc. A fisiologia e movimentos da faringe fizeram parte também de suas cogitações.

Ao lado da atividade de Einthoven como investigador, figura honrosamente seu trabalho como professor. Diz de Waart que ele nunca deixou de cumprir seus deveres em relação às aulas magistrais e que, considerando essa atividade sua parte mais fraca, procurava enriquecê-las com projeções e demonstrações. Einthoven foi autor de vários compêndios para exercícios práticos. O escrupuloso cumprimento dos deveres de rotina e o entusiasmo pelos assuntos da Universidade conduziram-no a situações de crescente prestígio, até que foi elevado, em 1905/6, a Reitor Magnífico da Universidade de Leiden.

O galardão máximo viria surpreendê-lo quase 20 anos mais tarde. Em 1924, encontrava-se Einthoven, com sua esposa, em viagem pelos Estados Unidos quando, em 23 de outubro, lhe foi concedido o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina daquele ano, por sua descoberta do mecanismo do ECG. Ao receber o prêmio, em Estocolmo, a 8 de dezembro de 1925, Einthoven proferiu uma memorável conferência a respeito do galvanômetro de corda e da medida da corrente de ação do coração. Em suas palavras finais, declara que "um novo capítulo se abria no aprendizado das doenças do coração, não por obra de um só homem, mas pelo trabalho conjugado de muitos homens de talento que, espalhados pelo mundo e sem respeitar fronteiras políticas, convergiam seus esforços para um propósito comum: aumentar nosso conhecimento da doença, para alívio da humanidade sofredora" (fig. 4).

A atividade científica de Einthoven vinculou-o a muitos grandes vultos da cardiologia, que vieram a se tornar depois seus dedicados amigos. Um deles foi Sir Thomas Lewis, cujos trabalhos tiveram tanta influência no desenvolvimento da eletrocardiografia e na divulgação das pesquisas de Einthoven, que levaram este último a dizer, em sua alocução de agradecimento, em Estocolmo, que, não fosse a obra de Lewis e talvez não viesse a caber a ele, Einthoven, o Prêmio Nobel. Um outro foi Frank N. Wilson, cujo laboratório de Ann Arbor, Einthoven visitou em sua viagem aos Estados Unidos, e para quem desenhou o eletrocardiógrafo de duas cordas que, durante muitos anos, foi o principal instrumento das pesquisas de Wilson no campo da eletrocardiografia.

Como sucede com praticamente todos os grandes seres humanos que enriquecem a História, houve quem lhe fizesse restrições, particularmente no que dizia respeito ao esquema do triângulo eqüilátero. Décourt13 , na época das discussões mais acesas, fez, na literatura médica nacional, a mais completa e documentada análise a respeito. Doutra parte, lendo opiniões autorizadas bem mais recentes, como a de Fisch14 e a de Wellens15 , vê-se que a contribuição de Einthoven apresenta a maior prova de seu alto valor com sua permanência entre os recursos mais freqüentemente utilizados na medicina moderna. E é gratificante verificar que livros bem informados de História da Cardiologia, como o de Snellen16 , também lhe fazem justiça. 

Willem Einthoven faleceu a 28 de setembro de 1927, aos 67 anos de idade, e foi sepultado a 1º de outubro, na Groene Kerkje de Oegstgeest, onde se acha localizado o jazigo das famílias Einthoven e De Vogel.

A lista completa de seus trabalhos, num total de 127, bem como o mais completo conjunto de informações a seu respeito, com ilustrações que aproveitam os clichês originais de muitos dos seus artigos, se encontra na obra já citada do Prof. A. de Waart, cuja leitura é indispensável a quantos se interessem pela vida e obra do grande mestre holandês e pela evolução dos conhecimentos de eletrofisiologia.

 

 

 

Agradecimentos

Ao Prof Dr A. de Waart, a remessa de seu livro; ao Prof Dr H.F.W.D. Fischer, pró-secretário do Senado da Universidade de Leiden, pelas informações e material tipográfico enviados; ao Rotary Club de Semarang, pela busca de informações sobre a família Einthoven; ao Eng. Agr. Pieter Hupkens e ao Sr. Bob van der Meyden, pelas muitas horas gastas lendo e explicando para mim o texto holandês; às funcionárias da Biblioteca de nossa Faculdade, pelo valioso auxílio na obtenção dos artigos originais de Einthoven.

 

Referências

1. Wilson FN - The electrical currents associate with the heart beat, In: Johnston FD, Lepeschkin E, eds - Selected Papers of Dr. Frank N. Wilson. Ann Arbor, Michigan: Heart Station University Hospital 1954: 1.

2. Waart A. de - Het Levenswerk van Willem Einthoven. Haarlem: Erven F. Bohn N.V. 1957: 1-258.

3. Wiggers - Reminiscences and Adventures in Circulation Research. New York: Grune & Stratton 1958: 137.

4. Fishman AP, Richards DW - Circulation of the Blood: Men and Ideas, New York: Oxford University Press 1964: 292.

5. Einthoven W - Un nouveau galvanometre. Arch Neerl Sc Ex Nat: 1901; 6: 625-39.

6. Einthoven W - The galvanometric registration of the human electrocardiogram, like-wise a review of the use of the capillary electrometer in physiology. In: Willius FA, Keys TE, eds - Cardiac Classics. St. Louis: The CV Mosby Co 1941: 722-28. Traduzido do original alemão de 1903.

7. Einthoven W - Le Télécardiogramme. Arch Internat Physiol 1906; 4: 132-64.

8. Einthoven W - Le Télécardiogramme. Arch Internat Physiol 1906; 137.

9. Einthoven W - Weiteres über das Elektrokardiogramm. Pflügers Arch ges Physiol; 1908; 122: 517-84.

10. Einthoven W, Fahr G, Waart A de -Über die Richtung und die manifeste Grosse der Potentialschwankungen im menschlichen Herzen und über den Einfluss der Herzlage auf die Form des Elektrokardiogramms. Arch Ges Physiol 1913; 150: 275- 315.

11. Einthoven W - The different forms of the human electrocardiogram and their signi-fication. Lancet 1912; 1: 853-61 (Chelsea-lecture).

12. Einthoven W, Bergansius FL, Bijtel J - Die gleichzeitige Registrierung elektrischer Erscheinungen mittels zwei oder mehr Galvanometer und ihre Anwendung auf die Elektrokardiographie. Pflügers Arch ges Physiol 1916; 164: 167-97.

13. Décourt LV - Lições de Patologia Cardiocirculatória. São Paulo: Melhoramentos 1945: 32-59.

14. Fisch C - The clinical electrocardiogram: A classic. Circulation 1980; 62(suppl III): 1-4.

15. Wellens HJJ - The electrocardiogram 80 years after Einthoven. J Am Coll Cardiol 1986; 7: 484-91.

16. Snellen HA - History of Cardiology. Rotterdam 1984: 114-22.

 

Correspondência: Rubens Maciel - Rua Hilário Ribeiro, 354/202 - 90510-040 - Porto Alegre, RS