Caminhos da Cardiologia

Laënnec e o estetoscópio. Símbolos da Clínica Moderna

 

Max Grinberg
São Paulo, SP

 

O presente retorno da secção CAMINHOS DA CARDIOLOGIA se faz com uma lição de alto interesse. Focalizando o grande clínico francês Laënnec, o autor analisa a época, o homem, o médico e a realização, fornecendo dados sólidos e objetivos sobre o criador e a criação. E, assim, torna presente um dos construtores da medicina moderna.

De fato, por um lado, com seu método de "auscultação mediata", ele individualizou, nos médicos, um ser capacitado à compreensão de perturbações orgânicas internas. E, portanto, fez do clínico um real observador. Como acentuou Edouard Rist, Laënnec libertou a medicina de sistemas quiméricos que, desde a antiguidade, a mantinham na infância. Nutrindo-a com dados concretos ele a fez adulta e a dotou de um método que a transformou em ciência no sentido moderno do termo.

Por outra, aprofundando sua invenção, fez dela um meio de associar a clínica à anatomia patológica, então permitindo o reconhecimento dos caracteres de várias doenças torácicas. Desta forma, estabeleceu as realidades e, portanto, os limites de afecções mórbidas ainda imprecisas e confusas.

Todas essas conquistas estão presentes no artigo do Prof Max Grinberg, que nos faz compreender o homem em sua época e o pesquisador em sua contribuição. E, assim, situa com precisão os direitos do criador do estetoscópio ao reconhecimento de todos os médicos que ainda prezam o exame clínico.

 

...se você escutar colocando o ouvido no peito...
Hippocrates "De Morbis" (400 a.C.)

A época - Arrancar raízes inamovíveis sempre foi um desafio. Mas, atrevidos tentam, e com audácia eles implodem fundamentos ultrapassados e constroem novos alicerces. Entram para a história e merecem ser reverenciados. A honra é obtida, tanto pelo pensamento teórico como pela realização prática. Êles fazem o progresso da civilização e marcam época.

Na Europa do século XVIII, surgiram idéias que mudaram o curso da história nos campos médico e social. Filósofos na França criaram o rastilho, entusiasmaram o povo e provocaram a faísca. Eles foram heróis do pensamento e anteviam a chegada dos heróis da ação histórica porque sabiam que quando uma nação pensa, é difícil detê-la.

François Marie Arouet (1694 - 1778), Voltaire por opção, após um ano preso na Bastilha por ofender o tutor de Luís XV, influenciado pelo conceito britânico de liberdade adquirido num exílo de três anos, atacava com espírito satírico ("...rio para não me enforcar...") a ordem estabelecida na monarquia, pretendendo reformar o Ancien Regime. Jean Jacques Rousseau (1712 -1778) oferecia o "Contrato Social" que invocava a volta da soberania como privilégio do povo e o rei como o seu primeiro servidor. Charles Louis de Secondat Montesquieu (1689 - 1755) publicava as "Cartas Persas" que zombava do regime político vigente e "Espírito das Leis" que advogava a substituição da monarquia absolutista por um estado com executivo, legislativo e judiciário com independência entre si.

As reflexões destes pensadores tornavam transparentes as contradições vigentes, e destes laboratórios multiplicaram-se balões de ensaio de experiências precursoras de uma modificação profunda na organização social, política e econômica da humanidade.

Uma transformação radical assim estimulada foi seguindo seu curso e a ideologia amadureceu. Culminou com a decadência da autocracia do rei e por caminhos tortuosos e dolorosos com a ascendência da democracia dos cidadãos. Na verdade foram quatro revoluções interligadas, aristocrática (1787 - 1789), burguesa (1789 - 1799), camponesa (1789 - 1793) e do proletariado urbano (1792-1794) que ficaram conhecidas como a Revolução francesa. Um dos seus primeiros atos, a tomada da Bastilha, tornou-se um símbolo da implantação e universalização dos Direitos do Homem (decalcada na Declaração da Independência Americana de Thomas Jefferson) e dos princípios cívicos do trinômio Liberté, Egalité e Fraternité.

Concomitante aconteceu também na Europa uma revolução no ensino da medicina. Até então, pouco se questionava a validade da tradição medieval fundamentada nos ensinamentos dos clássicos. Havia estagnação do saber médico e pouco entusiasmo por pesquisas. A este estado contrapôs-se nova mentalidade condizente com a efervescência da época, o empirismo clínico ganhou força. Esta doutrina privilegiava a experiência como a origem do conhecimento. Ela negava que os princípios puramente racionais e especulativos pudessem conduzir à verdade científica.

De sedibus et causis morborum per anatomen indagatis, publicado pelo italiano Giovanni Battista Morgagni (1682 - 1771) e Inventum novum ex percussione thoracis humani ut signo abstrusos interni pectoris morbos detegendi, pelo austríaco Leopold Auenbrugger  (1722 - 1809), ambos originais em latim surgidos no ano de 1761, deram novas feições ao aprendizado da medicina. O primeiro exaltou a correspondência entre os dados anatomopatológicos e a anamnese, e o segundo, entre aqueles e os sinais obtidos pela percussão do tórax nas afecções pleuropulmonares.

Foi o francês Jean Nicholas Corvisart (1755 - 1821) que deu consistência prática a esta doutrina pedagógica. Sua experiência sobre o controle necroscópico do diagnóstico clínico à beira do leito ficou registrada no Essai sur les maladies et les lésions organiques du couer et des gros vaisseaux, editado em 1806. Traduzido para várias línguas 1 , livro de texto preferido na França, Inglaterra, outros países europeus, e até mesmo nos Estados Unidos da América (EUA), desempenhou poderoso estímulo para a crescente valorização da medicina exercida à beira do leito e das correlações clínico-necroscópicas.

Três anos após, o escocês Allan Burns publicou uma observação anátomo-clínica pioneira da insuficiência mitral: "...ouvia-se um barulho de assobio...na necropsia havia uma valva mitral endurecida...em cada contração o sangue fluía parte para a aorta e parte para a aurícula esquerda...a regurgitação do ventrículo para a aurícula deve ter produzido o assobio..." 2 .

Neste período de transformações vitais nasceu, cresceu, clinicou, lecionou e morreu imortal um bretão que inventou o estetoscópio.

O homem - As ebulições da época estavam bem presentes na Bretânia, a região do noroeste da França de origem céltica onde, na pequena cidade de Quimper nasceu em 17 de fevereiro de 1781 o súdito de Luís XVI, René Théophile Hyacinthe Laënnec, futuro cidadão e médico. Filho primogênito do juiz naval Théophile Marie e de Michelle, foi batizado René em homenagem ao avô, Théophile ao pai e Hyacinthe a uma tia-avó. O sobrenome era de origem bretã e significava pessoa estudada. Aos 5 anos de idade, o menino René Théophile ficou órfão de mãe, morta poucos dias após um parto. Dois anos após, em 1788, foi morar com seu tio Guillaume, o reitor da Faculdade de Medicina da Universidade de Nantes.

O novo ambiente foi fundamental para sua escolha profissional. Aos 14 anos, quando o sobe-desce freqüente da guilhotina marcava o Regime do Terror de Robespierre, Laënnec tinha sua cabeça a serviço do Hôtel Dieu de Nantes como auxiliar médico. Aos 18 anos de idade, ele estava trabalhando no Hospital Militar de Nantes no posto de cirurgião de 3ª classe. Tinha certeza da vocação para a medicina, mas os recursos para os estudos eram escassos.

No alvorecer do século XIX, René Théophile foi estudar na École de Médicine de Paris graças a uma mesada modesta do seu tio médico. Aquela Faculdade, sob influência do espírito das transformações sociais da Revolução francesa, era o maior centro de pesquisas clínicas da Europa.

Laënnec era um jovem de baixa estatura e aparência frágil, sardento com cabelos ruivos lisos. Passou dificuldades, até fome, mas conseguiu completar os estudos com distinção. Pretendera retornar e clinicar na sua terra natal, não obstante se fixou em Paris, tinha muito a aprender. Ao mesmo tempo em que ia adquirindo renome, foi perdendo a saúde. O clima da futura cidade-luz em nada iluminava sua disposição física. Era-lhe uma penumbra hostil. Sofria de asma brônquica, o trabalho exaustivo no clima urbano precipitava crises freqüentes. As obrigações prejudicavam tanto a sua condição física que se arrependeu de não ter preferido clinicar em uma cidade pequena, longe do furacão social de Paris, como confidenciou a um amigo.

Devido à precária saúde, Laënnec interrompia o exercício profissional em Paris com períodos por vezes longos de descanso nos campos saudáveis da Bretânia, a sua adorada região de origem. Voltava fortalecido, assim alternava sua vida. Vivenciava um conflito íntimo. O cidadão doentio, enquanto clinicava, ansiava pela paz e pelo ar salutar do campo, por praticar equitação e por caçar com seus cães. O médico ilustre recuperado, ansiava voltar para Paris para cumprir seus deveres docentes e assistenciais.

Laënnec achava-se um hipocondríaco, era um depressivo. Entendia que os seus sintomas da asma e da gota eram psicossomáticos. Certa vez escreveu: "...quando estou com minha arma sobre os ombros pouco sofro de hipocondria, gota ou asma. Consigo subir montanhas com qualquer clima como qualquer outro... estou bem quando tenho na mão uma pá ou um cinzel, mas o trabalho no consultório perturba meus nervos..."3 . Estava convencido de que, estar ou não doente, era uma alternativa regida por sua apreciação, consciente ou não da atmosfera do momento.

Laënnec permaneceu solteiro até os 43 anos em uma época em que a expectativa de vida na Europa girava em torno de 40 anos. Casou-se com a viúva Jaquette Guichard, então sua governanta, segundo ele próprio para evitar mexericos. Não deixou filhos, a mulher abortou na única vez em que engravidou.

Em 1826, a saúde de Laënnec deteriorou. Tinha febre, tosse, dor no peito, fadiga, dor abdominal e diarréia. Seu próprio diagnóstico foi "tísica em 3º grau". Biógrafos sugerem que os episódios de desconforto respiratório já poderiam ter etiologia tuberculosa. Esta interpretação faz da vida de Laënnec uma batalha vitalícia contra a "peste branca", que já ceifara certamente seu amigo Bayle e provavelmente sua mãe puérpera. Foi aconselhado a deixar Paris e voltar para a Bretânia em busca de ares terapêuticos. Foi a última e penosa viagem de volta à mansão de Kerlouarnec, herdada do pai e que ficava a cerca de 20km da sua cidade natal de Quimper. Morreu de enterite tuberculosa dois meses depois, num domingo 13 de agosto, com a idade de 45 anos.

O médico - Laënnec foi discípulo de notáveis como Dupuytren, Bichat, Corvisart e Bayle. Foi um aluno aplicado, integrou-se ao sistema da época, clinicou influenciado pelo empirismo emergente, valorizou a prática à beira do leito, dimensionou a necropsia como gold-standard da interpretação do exame físico, publicou suas observações e foi um pesquisador laureado. Sempre esteve à frente de sua época. Seus métodos de estudo sobre as doenças foi revolucionário e sua criatividade ficou evidente já aos 21 anos de idade, quando elaborou uma dissertação sobre peritonite, muito avançada para os conceitos vigentes.

Em 1804 completou os estudos e, entendendo que olhar para o futuro exige rever o passado, preparou a tese Propositions sur la doctrine d’Hyppocrate relativement à la médicine pratique. O espírito da época estava dominado pelos clássicos e influenciou o tema formal da sua monografia. Todavia, Laënnec já alivanhava suas idéias inconformistas.

Ele foi um médico conceituado, ganhou fama e teve clientes famosos, lecionou como Professor de Clínica Médica no Collége de France e publicou em latim como o hábito na época. Coeditou o Journal de Médecine e contribuiu para a composição do Dictionaire des Sciences Médicales. Foi Chevalier de La Légion d’Honneur 4 .

Laënnec aprendeu com Gaspard-Laurent Bayle (1774 - 1816) a técnica da ausculta direta. Já após a morte do mestre que se tornou amigo e companheiro de Serviço, Laënnec escreveu: "...Bayle foi o primeiro que eu vi usar a ausculta direta no Serviço de Corvisart...o professor nunca punha sua cabeça no tórax " 2 .

Laënnec possuía uma invejável capacidade de trabalho quando a sua saúde permitia. Sua jornada começava às oito horas da manhã e prosseguia ininterruptamente até se recolher, às onze da noite. Funcionava no limite da sua força física combalida. Em 1816, aos 35 anos de idade, era o responsável por 100 leitos no Hospital Necker desde a morte de Bayle. O Serviço estimulava sua argúcia e lhe permitia cruzar, através de anotações minuciosas, os sinais do exame físico com os dados da necropsia de um mesmo paciente, particularmente do portador de pneumopatia. Mais tarde, sucedeu Corvisart no Hospital de la Charité e ao contrário do predecessor, gostava do examinar pessoalmente os enfermos in vivo e post-mortem.

Em um dia normal de trabalho, aconteceu o fato que marcou seu ingresso no panteão dos grandes vultos da medicina.

O inventor - Grandes invenções não necessitam ser complexas, basta terem utilidade, o proveito atesta o valor. Em tempos de transição, as inovações materializam-se após sofrerem um processo não manifesto de pre-maturação. O executor vai "procurar" o amadurecimento já com os implementos delineados no subconsciente. E um dia, a oportunidade de "encontrar" aparece como que vindo do nada. Este sentido de previsão consta da própria etimologia comum entre inventar e encontrar, o verbo latino invenire.

Não há porque ter sido diferente com o impulso de Laënnec em meio à ascenção do empirismo científico. O desagrado com os métodos vigentes incapazes de subsidiar in vivo informações sobre o que ele, Laënnec constatava post-mortem, funcionou como o estímulo oculto. Fluiu a inspiração e emergiu uma criação sem mistérios, algo que não se pensara antes. Com instintiva sabedoria, imaginação e originalidade e defronte do paciente, o mais apropriado ponto de encontro do processo de criatividade para um clínico. Esta maturação presente na invenção do estetoscópio pode ser notada nas palavras do próprio Laënnec4 .

O desagrado: "...a ausculta direta de encostar o ouvido no peito é desconfortável, tanto para o médico como para o paciente, e provoca uma repugnância que a torna impraticável no hospital. É inconveniente no exame de mulheres devido ao obstáculo físico que as mamas podem representar...".

A oportunidade: "...neste ano de 1816, eu fui procurado por uma jovem senhora em trabalho de parto com sintomas de cardiopatia. A possibilidade de palpação e percussão cardíaca estava prejudicada pelo grau de obesidade. Tive uma idéia...
...ocorreu-me que um som se amplifica quando transmitido através de um sólido. Lembrei-me que as crianças costumam arranhar com um alfinete uma das extremidades de um pedaço de madeira e ouvir o ruído nitidamente transmitido na outra...

...imediatamente enrolei folhas de papel em forma de cilindro bem apertado, encostei uma ponta no tórax da gestante, me inclinei e apoiei o meu ouvido na outra. Pude perceber a ação do coração de uma maneira muito mais clara e distinta do que fora capaz até então pela ausculta direta..." (fig 1).

Estava inventado o estetoscópio, o primeiro instrumento poderoso de diagnóstico clínico dentro de um consultório médico, com gasto mínimo de matéria-prima, sem nenhum planejamento, sem nenhuma avaliação de custos. Foi uma improvisação artesanal que deu certo porque a época trazia consigo a avidez. Porque Laënnec foi este homem-momento e não outro clínico contemporâneo que também representasse o binômio contato com o paciente-amadurecimento de uma transição? Segundo a teoria compensadora da criatividade do austríaco Alfred Adler (1870-1937), pela ativação de poder criativo por sua deficiência, a má saúde física.

Laënnec não parece ter requerido patente da invenção, muito embora se saiba que já no século XVII os ingleses a praticavam e que em 1790 os EUA já haviam legislado sobre a matéria.

É interessante recordar que foi Leonardo Da Vinci (1452 - 1519) quem descreveu que o som de um movimento é melhor transmitido por uma superfície sólida: "...colocando uma extremidade do remo na água e o ouvido na outra, ouvem-se navios a uma grande distância...colocando do mesmo modo no solo, ouve-se alguém passando à distância..." 2 .

Perspicaz, Laënnec logo reconheceu o valor propedêutico do cilindro que "puerilmente" recém criara. Conhecia as palavras do inglês Robert Hooke (1653-1703) ditas mais de um século antes: "... eu fui capaz de ouvir claramente o batimento do coração humano... quem sabe, pelos sons que os movimentos dos órgãos internos fazem, possamos descobrir as tarefas efetuadas em vários escritórios e lojas do corpo humano, e daí reconhecer que instrumento ou máquina está com defeito..." 5 . Intuiu que poderia ter à disposição um método não-invasivo para desenvolver um raciocínio clínico mais objetivo com o novo recurso, e assim antecipar pre-mortem pormenores de diagnóstico.

Laënnec iria distinguir sinais e com eles clinicamente visualizar lesões e assim classificar pneumopatias de maneira similar ao levado a efeito pela anatomia patológica. Mãos à obra, Laënnec, que tinha habilidade manual, empenhou-se imediatamente em aperfeiçoar o seu frágil cilindro de papel e chegou ao 1º esteto (do grego peito) scópio (exame), que era de madeira e tinha 33cm de comprimento e 5cm de largura. Por concepção, ele deveria transmitir todos os sons gerados no paciente ao ouvido do observador, com o menor grau de distorções e acréscimos por interferências externas.

E assim Laënnec, como um autêntico precursor da bioengenharia, fez despontar a profícua era pós-estetoscópio.

A contribuição pessoal - No início do século XIX, a observação clínica substituía a especulação não confirmada na educação médica, o médico se aproximava do paciente que, na França, recém-conquistara o direito de cidadão. O ensino da medicina perdia o seu caráter autocrático e elitista, e ganhava receptividade, uma doutrina iconoclasta que trazia no seu bojo a oportunidade democrática de impor todo e qualquer conceito cuja compreensão fosse baseada no empirismo científico. Clareava a idéia de que o conhecimento científico é cumulativo e um de seus estímulos fundamentais é a exigência social.

Neste cenário, Laënnec soube desenvolver um método propedêutico modelado na sua invenção e harmônico com a nova filosofia clínica da época. Confirmou que a dinâmica da esteto-ausculta trazia um benefício clínico que não existia na estática era pré-estetoscópio.

Contribuiu, desta maneira, para a consagração definitiva do sentido da audição no exame físico, robustecendo o componente auscultatório - agora estetoacústico - da desde então tétrade clássica inspeção, palpação (ambas há muito praticadas), percussão (recém-valorizada na época) e ausculta (até então fortuita). Aplicou-se com tenacidade e inteligência. Desenvolveu o raciocício clínico sobre doenças torácicas, fundamentado na correlação entre sinais estetoacústicos e anatomopatológicos. Foi anotando ruídos normais e anormais e reconheceu as modificações que a voz sofre ao ser transmitida através, ou de condensações e cavitações no parênquica pulmonar, ou de um derrame na pleura, enfim estados mórbidos que lhe eram familiares às necropsias.

Impulsionado por uma energia que paradoxalmente emanava do corpo debilitado pela doença, Laënnec registrou suas observações em 2 tomos, tornando-as accessíveis a qualquer leitor interessado. A 1ª edição surgiu em agosto de 1819. A capa do livro, como costume da época, continha muitas informações: De L’Auscultation Médiate ou Traité du Diagnostic des Maladies des poumons et du coeur, fondé principalement sur ce nouveau moyen d’exploration. Par R.T.H. Laënnec, D.M.P., Médecin de l’Hôpital Necker, Médecin honoraire des Dispensaires, Membre de la Société de la Faculté de Médecine de Paris et de plusieurs autres sociétés nationales. Pouvoir explorer est, à mon vis, une grande partie de l’art. Hipp., Epid. III. A Paris, chez J. A. Brosson et J.S. Chaudé, Libraires, Rue Pierre Sarrazin 9, 1819.

Seu senso prático dominava. Inseriu capítulos sobre como construir o estetoscópio e como aplicá-lo para o exame físico. Vendia um de madeira junto com o livro, com acréscimo de apenas 2,5 francos. Conscientemente ou não, Laënnec colocava à disposição um kit completo com manual de instruções.

Laënnec se comunicava com um estilo direto e agradável de se ler, condizente com sua simplicidade: 4 .

"...Passei a chamar o instrumento de cilindro ou de estetoscópio e experimentei vários modos de construí-lo...

...concluí que materiais de média densidade como papel, madeira ou cana da Índia são mais apropriados para a condução do ruído e portanto para o meu propósito. Esta ilação provavelmente contraria os princípios da física, mas me pareceu definitiva...

...o modelo preferível é um cilindro simples de madeira, perfurado longitudinalmente e dividido, para facilitar o transporte em duas partes que se encaixam. Uma das extremidades é escavada uma polegada e meia em forma de funil e obliterada por uma peça de madeira com um orifício central, para manter a perviabilidade do tubo...

...o instrumento completo, ou seja, o tubo em funil tampado, tenho usado para investigar sinais obtidos ou através da voz ou decorrentes da ação do coração. Com o tampão removido, ele se torna útil para o exame dos sons provenientes da respiração...

...a partir do meu primeiro exame eu imaginei que poderia apurar as características, não somente da ação cardíaca, como também de qualquer tipo de som produzido pelo movimento de vísceras torácicas...

...com esta convicção eu comecei a realizar imediata-mente, uma série de observações no Hospital Necker. Descobri novos sinais das doenças do tórax, pneumopatias, pleuropatias e cardiopatias...

...faz 3 anos que pesquiso os resultados que ora publico. Uma das razões para os comunicar é a esperança e a convicção de que o modo de exploração detalhada neste trabalho será confirmado e expandido por outros observadores...

...penso que a anatomia patológica é o guia mais seguro do clínico para o diagnóstico e terapêutica das doenças...".

As contribuições de Laënnec incluem: a) a constatação de que o tubérculo é a lesão básica da tísica, que a partir de 1839 passou a ser designada de tuberculose por sugestão de Johann Lucas Schoënlein; b) a classificação clínica pioneira e ainda hoje utilizada das pneumopatias sob base anatômica; c) as descrições clássicas de enfisema pulmonar, bronquite, bronquiectasia e edema pulmonar; d) a nomenclatura dos ruídos pulmonares. "...entendo por roncos, os ruídos anormais que a passagem do ar, durante a respiração produz, seja atravessando líquidos dentro dos brônquios ou no tecido pulmonar, seja em razão de um estreitamento parcial dos condutos aéreos..."; e) a observação e a designação da pectorilóquia e sua correlação com cavidade tuberculosa; "...aplicando o cilindro abaixo da clávícula enquanto ela falava, sua voz parecia vir diretamente do peito e alcançar o ouvido através do canal central do instrumento..."; f) a observação da pectorilóquia caprina ou egofonia e sua correlação com o derrame pleural de pequena intensidade; g) a observação e a designação da broncofonia e sua correlação com a consolidação pulmonar; h) a observação do atrito pleural; i) a observação da 1ª e da 2ª bulhas cardíacas, de irregularidade do ritmo por extra-sístoles e de sopros causados por lesões valvares. A errônea interpretação vigente da 2ª bulha como contração atrial-dependente prejudicou sua tentativa de classificar os ruídos cardíacos6 . É oportuno citar que foi William Harvey (1587-1657) quem primeiro fez referência à existência de batimentos normais e foi James Hope (1801-1841) quem interpretou corretamente as 1ª e 2ª bulhas cardíacas através de experiências em animais e possibilitou o desenvolvimento subseqüente da ausculta do coração.

Por tudo isso, Laënnec e o estetoscópio tornaram-se pilares na formação da medicina moderna.

A difusão - França e Inglaterra durante décadas disputaram a hegemonia dos conhecimentos médicos. À época da invenção do estetoscópio, Paris dominava. A tônica da opinião médica européia era o interesse crescente pelo exame físico. Doenças que não exibiam sinais característicos, como a coronariopatia, foram relegadas a plano secundário.

O sucesso de Laënnec tornou Paris um centro de treinamento estetoacústico e consolidou o realce clínico. A sua fama rapidamente atravessou fronteiras e atraiu clínicos da Europa e da América que tornaram o método internacional. O estetoscópio era "exportado" na bagagem dos que regressavam, entusiasmados, a suas pátrias. Em certas cidades, os pacientes preferiam ser examinados por quem estivesse capacitado com o "aparelho".

Uma expressão do impacto do novo instrumento pode ser lida em Xamã, o romance do norte-americano Noah Gordon sobre um médico do século XIX. No capítulo 46 intitulado Os Sons do Coração o cenário é os EUA passados cerca de 50 anos da invenção: "... no sexto sábado de Xamã na Policlínica, o Dr Meigs deu uma aula sobre o estetoscópio. Meigs estudara na França com professores que tinham aprendido com o próprio inventor a usar o instrumento...". Noah Gordon ainda registra o aperfeiçoamento estimulado por sua progressiva utilização: "...Meigs disse que até pouco tempo os estetoscópios eram tubos simples de madeira e os médicos escutavam com apenas um ouvido. Mostrou então a versão mais moderna do instrumento, o tubo era feito de seda e tinha duas peças de marfim, uma para cada ouvido...".

Ocorreram algumas distorções na apreciação inicial da edição do De L’Auscultation Médiate. Houve muita incredulidade e ridiculização, como sói acontecer em situações de fama súbita. Enfrentou atitudes conservadoras infensas à modernização, afinal o misoneísmo não é privilégio de povos ou profissões. Foi alvo de charges depreciativas, ganhou o apelido de "cilindromaníaco". Travou uma batalha contra a crítica ácida e colérica de François Broussais. Foi uma oportunidade para Laënnec revelar sua clareza de pensamento e sua dinâmica revolucionária de trabalho 1 .

Laënnec, na 2ª edição, reescreveu boa parte do texto, tornando-o muito mais do que uma exposição da arte da ausculta, um verdadeiro tratado sobre doenças pulmonares. Incidentalmente continha a descrição de uma doença atrófica do fígado da qual acabou como epônimo, a Cirrose de Laënnec. Esta edição, bem como as póstumas 3ª e 4ª obtiveram maior sucesso de venda que a original. Os seus discípulos aperfeiçoaram o método estetoacústico e o incorporaram à rotina de vários serviços. Quem neles fosse examinar um paciente não podia dispensar o estetoscópio.

A dimensão deste vigor também é registrada por Noah Gordan: "... fez uma pausa e olhou diretamente para o Dr Meigs: - Não posso fazer nada pela minha surdez... O Dr Meigs olhou para Xamã: - ...aceitamos que o senhor examine sem o estetoscópio. ...Xamã sabia que aquele era o momento em que o Dr Meigs teria usado o estetoscópio. Podia imaginar os sons interessantes e trágicos que teria ouvido, os sons de um homem afogando-se nos fluidos do próprio corpo...".

A aplicação extratorácica do estetoscópio resultou da criatividade de Jacques Alexandre Lejumeau de Kergaradec, discípulo e conterrâneo bretão do mestre. Em 1822, ele ouviu pela primeira vez através do estetoscópio, o sopro uterino de uma grávida e os batimentos fetais. Aperfeiçoava assim a declaração do suíço François Isaac Mayor (1779-1854) de quatro anos antes : "...quando se põe o ouvido no abdômen da mulher, ouvem-se os batimentos do coração da criança... é sinal que ela está viva..." 2 .

O processo de aprimoramento do novo recurso inicialmente distinguiu a comodidade, anexando às extremidades uma peça torácica e outra auricular. Já em 1828, Pierre-Adolpho Piorry (1794-1879), bretão como Laënnec, adelgaçou o tubo à espessura de um dedo e introduziu na extremidade torácica, uma peça em forma de tuba e na auricular, uma oliva adaptável ao ouvido, com grande ganho de conforto. Em 1876 surgiu o modelo de metal concebido por Pinard, o mono-auricular ainda em uso, consagrado para fins obstétricos.

Além fronteiras, Joseph Skoda (1805-1881) em Viena, deu maior requinte à ausculta do tórax. Foi o criador da cardiologia como especialidade, empunhando o estetoscópio de Laënnec. Seu livro Abhandlung über Perkussion und Auskultation surgiu em 1839, teve seis edições e contribuiu para revigorar a escola médica de Viena. Skoda interessou-se mais particularmente pelos ruídos cardíacos e corrigiu os erros de Laënnec nesta área, após James Hope (A Traitise of the Diseases of the Heart and Great Vessels - 1832), haver esclarecido que a 2ª bulha não era de origem atrial. Ensinou que "...os sinais dependem das propriedades das lesões anatômicas subjacentes..." e desta maneira retificou o conceito de Laënnec que "...cada doença tinha um grupo especial de sinais físicos..."

O inglês Thomas Hodgkin (1798-1866), ainda estudante, esteve em Paris estudando com Laënnec e voltou com um estetoscópio na mala. O escocês William Stokes (1804-1878) introduziu o estetoscópio em Dublin e o italiano Guido Baccelli (1832-1916) foi um dos pioneiros da estetoausculta em Roma. O norte-americano James Jackson passou a recomendar o uso do estetoscópio a seus alunos da Universidade de Harvard, em Boston, não mais de 10 anos após a invenção, muito embora a rotina do diagnóstico pelo exame físico nos EUA tenha se consolidado muito mais tardiamente do que na Europa.

Um dos discípulos de Jackson, Austin Flint (1812-1886), tornou-se expoente da ausculta com estetoscópio. Tornou-se epônimo de um sopro cardíaco, mas seus con-temporâneos o admiraram particularmente por suas contribuições sobre tuberculose. O inglês John Forbes (1787-1861) decidiu traduzir o De L’Auscultation Médiate, após ter lido a primeira descrição em inglês da técnica de Laënnec elaborada pelo escocês James Clark em 1820.

Em 1821 surgiu: Treatise on the Diseases of the Chest in which they are described according to their Anatomical Characters and their diagnosis established on a new principle by means of Acoustick Instruments. Translated from the french of R.T.H. Laënnec, m.d. with a preface and notes by John Forbes, m.d. 6 . O livro foi condensado em um único volume e o texto remanejado pela criação de duas seções, a primeira sobre patologia e a segunda sobre diagnóstico. Três anos depois, Forbes publicou seu próprio livro Original cases with dissections and observations illustrating the use of the sthetoscope and percussion, o primeiro texto sobre a experiência inglêsa com o estetoscópio. No ano seguinte apareceu, também na Inglaterra, uma espécie de manual, o Introduction to the use of the sthetoscope elaborado por William Stokes (1804-1878). Ainda na Europa, o italiano Angiolo Modigliani publicou a tradução Trattato della ascoltazione mediata, Livorno 1833.

Forbes não resistiu incluir algumas "contribuições" na tradução do livro de Laënnec, especialmente na nomenclatura dos ruídos pulmonares, pelo que foi muito criticado na época. Contudo teve o grande mérito de permitir a difusão do novo método aos povos de língua inglesa. É digno de nota que Forbes usa no prefácio a expressão janela exatamente como hoje, no jargão ecocardiográfico: "... ele colocou uma janela no peito através da qual... " 2 . Mais curioso ainda é o tom céptico provavelmente influenciado pelo orgulho inglês perante uma conquista francesa: "... apesar do valor, acho incerto que se torne rotina; porque seu uso requer muito tempo, traz transtornos para o paciente e para o médico, e suas características são estranhas aos nossos hábitos... é até mesmo cômico um clínico solene e formalmente, escutando através de um longo tubo aplicado ao tórax do paciente, como se a doença fosse um ser vivo que pudesse se comunicar..."2 .

Que engano diríamos passados 180 anos do dia em que Laënnec enrolou algumas folhas de papel e se tornou famoso. Todavia, a visão de Forbes não estava totalmente incorreta. A bem da verdade, a ausculta direta ainda permaneceu preferida por vários expoentes e serviços, na própria França inclusive, berço do estetoscópio.

Foi no início do século XX que a aplicação dos ruídos de Korotkoff para a determinação da pressão arterial sistêmica ampliou de fato, o uso do estetoscópio já no modelo bi-auricular. A disponibilidade do estetoscópio permitiu um conhecimento crescente sobre os ruídos cardíacos (quadro I).

A consagração do estetoscópio - O processo de aperfeiçoamento caminhou pari-passu com o progresso dos conhecimentos sobre a percepção humana dos tons, sons e ruídos. Os fenômenos acústicos cardíacos e respiratórios são geralmente ruídos, pois são compostos por várias freqüências, sem apresentar um tom fundamental. Eles sofrem ressonância, amortecimento e distorção desde o ponto de origem até a superfície por influência dos tecidos normais ou patológicos interpostos. As freqüências geradas no coração e grandes vasos não ultrapassam 1.000 ciclos por segundo e a intensidade é geralmente 10 decibéis. Muitas encontram-se no limite inferior da faixa de 500-4000 ciclos por segundo da melhor audibilidade humana.

A escuta pelo aparelho mono-auricular é equivalente à ausculta direta. Ela utiliza duas vias de condução do ruído: a óssea, variável com o tipo de material e o grau de contato com o ouvido e a coluna de ar que é influenciada pela pressão de toque exercida. É mais eficiente para ruídos entre 850-1000 ciclos, contudo esta não é faixa útil para a ausculta 7 .

A exata invenção do modelo bi-auricular é incerta, mas ele já existia quando o norte-americano George P. Cammann (1804-1863) inovou ao construir o tubo com material flexível e, segundo uma concepção bem moderna, no ano de 1855. Foi o verdadeiro precursor dos atuais estetoscópios, que hoje são confeccionados com tubo de plástico e peça torácica de aço inoxidável. O modelo bi-auricular conduz o som apenas através do volume de ar que fica o mais hermeticamente possível no tubo. A ausculta bi-auricular usufrui o efeito aditivo dos dois ouvidos, deduzindo-se alguma perda causada nas manobras de ajuste. Entre 60-400 ciclos por segundo onde se acha a maioria dos ruídos auscultados, ela excede em cerca de 20 decibéis a eficiência do mono-auricular.

Um aspecto arquitetônico importante no aperfeiçoamento do estetoscópio foi a noção de que, quanto mais curto e estreito, menor o volume de ar no sistema e maior a eficiência da transmissão. Aquém de 100 ciclos por segundo, a eficiência não é afetada pelo comprimento do tubo, mas entre 100-1.000 ciclos por segundo, há uma relação inversa entre eficiência e comprimento do tubo 7 . Esta característica influencia, por exemplo, a ausculta do sopro diastólico de baixa intensidade e do de alta freqüência da insuficiência aórtica. Ademais, o tubo de condução exige suficiente rigidez. E como a resistência à coluna de ar é inversamente proporcional ao diâmetro, passou-se a usar gráficos de eficiência em relação a volumes e a resistência, sendo a intersecção das curvas o ponto de eficiência máxima.

Uma variante do bi-auricular é o estetoscópio diferencial 7 do norte-americano William J. Kerr por ele designado de simbalofone, em 1937. Em vez da conexão em Y, ele apresenta duas peças torácicas e dois tubos distais em paralelo. Como estes têm comprimentos diferentes, os ruídos chegam a cada ouvido de modo não simultâneo, determinando a audição estereofônica. A vantagem é permitir localizações pelo princípio acústico da diferença de fase e comparação. Já em 1857, S. Scott Alison descrevera um análogo que consistia na junção de 2 mono-auriculares com tubo flexível. Em 1910, o alemão L.V. Muralt utilizara um tipo diferencial para auscultar duas áreas pulmonares ao mesmo tempo.

A peça torácica do estetoscópio foi originalmente uma campânula. Há cerca de 50 anos, verificou-se que ela não é uma mera coletora do ruído torácico. A pele do tórax limitada por suas bordas funciona como um diafragma e o subcutâneo como um amortecedor, assemelhando-se a um microfone ou telefone. Ou seja, o efeito diafragma gera um ponto de ressonância dependente da inércia, elasticidade, diâmetro e tensão e que corresponde ao máximo de sensibilidade a uma excitação externa. Desse modo, a variação da tensão exercida sobre a pele do paciente pode ser usada para filtrar ruídos de maior ou menor freqüência. Tornou-se hábito ouvir a 3ª bulha com alívio da tensão da campânula e o sopro diastólico aspirativo, apertando-a. Ademais, a campânula de menor diâmetro atenua e a de maior acentua a receptividade à baixa freqüência.

A membrana veio acrescentar maior grau de atenuação à ausculta dos ruídos de baixa freqüência e deste modo, reduziu a necessidade de uma compressão mais ativa para a ausculta dos ruídos de alta freqüência. É como se fosse uma segunda pele, exercendo o efeito diafragma. Este artefato para facilitar a ausculta dos ruídos de alta freqüência era inicialmente flexível e a seguir ganhou maior rigidez (tipo Bowles). Em 1926, Howard B. Sprague inventou a peça torácica única combinando campânula e membrana.

O Museu do Instituto de Patologia das Forças Armadas em Washington possui uma coleção de estetoscópios, incluindo a réplica, tanto do cilindro de papel quanto do protótipo de madeira de Laënnec. Lá está reunida a maioria dos modelos construídos desde então, com diversidade de materiais, formas e comprimentos, em busca do instrumento ideal. As variedades marcaram épocas e ganharam conotação de status de especialista.

O símbolo - O estetoscópio, qual um emblema, é um poderoso objeto de identificação da área de conhecimento (Medicina) com o indivíduo (Médico). O escritor e médico Artur Conan Doyle (1859-1930) ilustrou esta imagem de representividade. O seu personagem Sherlock Holmes desvendou a profissão de um homem porque ...uma saliência no lado de seu chapéu de copa alta mostrava onde ele escondeu o seu estetoscópio... (Escândalo na Boêmia).

A "cilindromania" prosperou e sua herdeira, a estetoacústica, adquiriu condição privilegiada de insubstituível. O fruto de um inspirado cilindro de papel em branco tornou-se presença obrigatória no bolso do avental, na maleta, na mesa de exame ao lado do esfigmomanômetro e nos ombros dos clínicos. Desse modo, o estetoscópio sinaliza o clínico atuante. E mais ainda, através do bom uso, porque manter a capacidade de atenção seletiva para a ausculta, exige uma prática constante.

De maneira natural e espontânea, o invento de Laënnec foi além da sua utilidade convencional. De instrumento simples e eficaz transformou-se num símbolo.

O símbolo do exercício da medicina clínica moderna!

 

Quadro I - Registros estetoacústicos pioneiros

Bulhas cardíacas

3ª bulha (ruído de galope proto-diastólico) pelo francês Jean Baptiste Bouilland (1797-1881) que a entendia originada nas artérias carótidas; 4ª bulha (ruído de galope pre-sistólico) na hipertensão arterial sistêmica e desdobramento fisiológico da 2ª bulha pelo francês Pierre-Carl Potain (1825-1901); hiperfonese da 2ª bulha na estenose mitral em 1842 pelo austríaco Joseph Skoda (1805-1881).

Estalidos

Estalido sistólico das dilatações aórticas e pulmonares pelo francês Pierre-Carl Potain (1825-1901); estalido de abertura da mitral pelo alemão Paul Guttmann (1834-1893).

Sopros sistólicos

Sopro da comunicação interventricular pelo epônimo francês Henry Roger (1811-1891); acentuação inspiratória do sopro sistólico da insuficiência tricúspide em 1946 pelo epônimo mexicano J. M. Rivero-Carvalho; sopro inocente vibratório de baixa freqüência em 1918 pelo epônimo George Frederick Still (1868-1941).

Sopros diastólicos

Sopro diastólico em ausência de lesão aórtica ou pulmonar, pelo norte-americano Richard C. Cabot (1868-1939) e atribuído a anemia severa; sopro da insuficiência aórtica, pelo irlandês Dominic John Corrigan (1802-1880); ruflar diastólico da estenose mitral, pelo francês R.J. Bertin (1767-1828); desaparecimento do reforço pré-sistólico na estenose mitral pelo inglês James Mackenzie (1853-1925); sopro mitral na cardite reumática, em 1924 pelo epônimo inglês Carey Coombs (1879-1932); ruflar diastólico apical, da insuficiência aórtica, em 1862 pelo epônimo norte-americano Austin Flint (1812-1886); sopro diastólico pulmonar, da hipertensão pulmonar, em 1888 pelo epônimo inglês Graham Steel (1851-1942); maior intensidade do sopro diastólico da insuficiência aórtica ao nível do 3º espaço intercostal para-esternal esquerdo por Willeim Herman Erb (1840-1921).

Ruídos sistodiastólicos

Duplo sopro femoral da insuficiência aórtica, em 1861, pelo epônimo francês Paul-Louis Duroziez (1826-1879); sopro " em locomotiva" , da persistência do canal arterial em 1900 pelo escocês George A. Gibson (1854-1913); ruídos arteriais da pressão arterial, pelo epônimo russo Nikolai Sergeyevich Korotkoff (1874-...).  

 

Referências

1. Herrick JB - A Short History of Cardiology. Springfield and Baltimore, Charles C. Thomas 1942, 1 th ed, 85-92. Leatham A - Auscultation of the heart. Lancet 1958; i: 757-65.

2. McKusick VA, Sharpe WD, Warner AO - An exhibition on the history of cardio-vascular sound including the evolution of the stethoscope. Bull Hist Med 1957: 31; 463-87.

3. Keers RY - Laënnec: his medical history. Thorax 1981; 36: 91-4.

4. Sakula A - RTH Laënnec 1881-1826. His life and work: a bicentenary appreciation. Thorax 1981; 36: 81-90.

5. Leatham A - Auscultation of the heart since Laënnec. Thorax 1981; 36: 95-8.

6. Kligfield P - Laënnec and the discovery of mediate auscultation. Am J Med 1981; 70: 275-8.

7. Rappaport MB, Sprague HB - Physiologic and physical laws that govern auscul-tation and their clinical application. Am Heart J 1941; 21: 257-317.

 

Correspondência: Max Grinberg - Incor
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