Caminhos da Cardiologia

Ernest Henry Henry Starling o cientista, o educador, e a lei fundamental do coração 

 

Paulo J. F. Tucci 
Botucatu, SP

Luiz V. Décourt
Coordenador

 

O artigo atual sobre Starling nos informa, com pormenores, acerca da vida e da atuação de um fisiologista cujos trabalhos experimentais exerceram grande influência no próprio campo do manuseio de cardiopatas.

Homem convicto do papel fundamental da pesquisa básica para o avanço da atividade clínica, exerceu constante pressão para que aquela busca se desenvolvesse. E isto em época na qual a fisiologia ainda era superficialmente exercida na Inglaterra.

Ao lado de conquistas em outros territórios orgânicos, interessam-nos, evidentemente, as obtidas no campo da cardiologia, com o estabelecimento de princípio morfofuncional básico do miocárdio.

Quando, sintetizando o amplo conjunto de verificações anteriores, ele nos informou, há 70 anos, que this relation between the lenght of the heart fibre and its power of contraction I called "the law of the heart" estava, com razão, expressando um grande princípio fisiológico que atuava como lei. E um volumoso grupo de ilações nasceu do conhecimento dessa capacidade de auto-regulação heterométrica da fibra muscular. Implicações hemodinâmicas e clínicas que se mantiveram e que, até hoje, constituem aspectos fundamentais em cardiologia, mesmo que algo modificadas com o avanço de conhecimentos.

Deve ser lembrado que uma das primeiras revistas especializadas sobre o aparelho circulatório, a chamada HEART, foi fundada pelo grande cardiologista Thomas Lewis, em 1909, em ato, sem dúvida, relacionado a seu estágio no Laboratório de Starling nos dois anos anteriores.

No decorrer do tempo, características complementares foram sendo reconhecidas, abrangendo propriedades físicas do miocárdio, histometria ultramicroscópica do tecido e, mesmo, certas interações bioquímicas.

Todos esses aspectos básicos e ulteriores vão expostos, com lógica e lucidez, pelo Professor Tucci, com a real autoridade de quem possui também experiência pessoal sobre o assunto.

 

In the cardiovascular area, the busy clinician... wil probably remember something about Osler... If any of the world’s cardiovascular physiologists come to mind, it will probably be Ernest H. Starling, and the reasons are not far to seek. Starling, more than any of the others, was a clinician’s physialogist and had a considerable appreciation of the complexity of clinical problems. But, far more important, he supplied the theoretical framework for a practical understanding of cardiovascular function, compensated and decompensated6 .

 

Mais velho dos sete filhos de uma família com recursos financeiro limitados, de fé religiosa fundamentalista, ERNEST HENRY STARLING nasceu a 17 de abril de 1866. O pai, um advogado, era funcionário da Coroa na Índia, e, embora tivesse contactos esporádicos com o filho, influenciou sua opção pela medicina. Considera-se que as características de personalidade de Starling se assemelhavam às da mãe, que o criou em Londres, com uma governanta canadense.

As circunstancias que prevaleciam no sistema de educação da Inglaterra, na época da formação intelectual de Starling, tiveram forte influencia na sua postura posterior. Segundo Matthew Arnold 2 : "It was a dangerous time for the nation... with a working class not educated at all, a middle class educated on the second plane, and the idea of science absent from the whole course and design of our education". Tendo negligenciado suas instituições de ensino e de pesquisa por cerca de um século, a Gra-Bretanha estava, somente, iniciando o processo de repensar o ensino, e a edução vivia uma fase confusa. As centenárias universidades inglesas, timidamente, começavam a implantar as diretrizes que hoje prevalecem 8 , e as deficiências eram muito grandes. As mais expressivas (Oxford e Cambridge) dedicavam pouco interesse para a atividade científica em geral, em particular para ciências biológicas e medicina, e exigiam conformidade religiosa como um dos pré-requisitos. A London Uníversity, em 1859, havia sido a primeira a oficializar, sob oposição de Oxford e Cambridge, uma faculdade de ciências.

Décadas mais tarde, as diretrizes educacionais inglesas ainda estavam se estabelecendo, e Starling, movido pela convicção que fundamentou a sua formação, e em coerência com seu próprio perfil profissional, engajou-se, fortemente, no esforço de implantar um novo direcionamento para a escola médica da Inglaterra.

Depois de terminada a escola básica, estudou no King’s College, onde recebeu formação clássica, que dedicava ênfase ao grego e latim, pouca atenção às línguas contemporâneas e nenhuma preocupação à ciência. Em 1882, com dezessete anos incompletos, Starling matriculou-se na London University, optando pelo Guy’s Hospital por influência de um tio professor. Diplomou-se em 1889. Ainda estudante, durante as férias de verão de 1886, consciente da necessidade de melhorar seu alemão, fez estágio na Alemanha, Heidelberg, no laboratório de Kühne, presumivelmente, trabalhando em algum aspecto da química da digestão. É considerado que o estágio na Alemanha exerceu influência marcada sobre Starling 9 , já que voltou entusiasmado com os fisiologistas alemães e, quando terminou seu treinamento clínico, estava determinado a se tornar um fisiologista, fato que, na época, estava longe de ser simples. Parece seguro que um dos aspectos do pioneirismo alemão que mais sensibilizou Starling foi o fato que o sistema produzia clínicos com orientação fisiológica, ao contrário do sistema inglês, que tendia para a produção de clínicos empíricos. No obituário de Starling, seu companheiro de trabalho Charles Lovatt Evans 9 deixou registrado: "His natural craving for exact knowledge on the one hand, and his early and growing bellef in the power with which physiological knowledge might be applied to the control and conquest of suffering on the other, attracted him to physiology while he was still a medical student. The idea that the fruits of mere observation had been gathered centuries ago, and that only experiment, properly controlled, could at once provide the key to the fascinating problems of physiology and the urgent ones of medicine, dawned early upon him."

Starling iniciou sua carreira acadêmica em 1887, como demonstrador de Fisiologia do Guy’s, e foi indicado para ser professor em 1890, ocupando a vaga que se criou com a morte precoce de Leonard Charles Wooldridge. Em função das deficiências do laboratório, iniciou trabalho no University College em associação com William Maddock Bayliss, que se tornou seu cunhado e parceiro mais forte de trabalho, durante trinta anos. A dupla se completava, e o entendimento entre eles transcendia a parceria profissional 3,9 . Bayliss era metódico, gentil, extremamente cuidadoso e deliberado; Starling era visionário, cheio de idéias, determinado, impaciente, em constante alerta mental. Em 1892 voltou para a Alemanha (Breslau), para trabalhar durante alguns meses com Heidenhain, e esteve no Instituto Pasteur, com Metchnikoff. No regresso, impressionado com o trabalho de Metchnikoff sobre fagocitose, traduziu suas conferências, para possibilitar o acesso a elas dos estudantes ingleses. Em 1897 Starling terminou a montagem do melhor laboratório de fisiologia de Londres no Guy’s, mas em 1899 foi atraído para o University College; no mesmo ano, foi eleito Fellow da Royal Society. No University College idealizou e batalhou pela criação de um Instituto de Ciências Médicas, que incluía Anatomia, Fisiologia, Farmacologia e uma biblioteca central. Aparentemente, a proposta, como um todo, era muito precoce para a época, mas, em 1909, como resultado do prestígio e da tenacidade de Starling, foi inaugurado o Instituto de Fisiologia e, mais tarde, com fundos providos pela Fundação Rockefeller, foi implantado o Institute of Basic and Medical Sciences.

Durante a primeira década dos anos 90, a atividade acadêmica de Starling foi, em parte, desviada do laboratório. Inicialmente, foi intensamente envolvido por forte campanha antiviveccionista desenvolvida por uma corrente liderada por Stephen W. B. Coleridge. O objetivo dos antiviveccionistas era tornar mais rígidas as restrições de uma lei inglesa de 1876, que regulamentava o uso de animais em laboratórios. Starling e Bayliss foram acusados de terem procedido à dissecção de um cão em vigília, e, em 1903, Bayllis acabou sendo processado. À inocentação de Bayliss seguiu-se acirrada disputa, que culminou, em dezembro de 1906, com a composição de um comitê composto por 70 cientistas liderados por Starling, para se reunir com a Royal Comission on Vivisection, nomeada pela Coroa para estudar o assunto. Durante três dias Starling debateu a matéria no Parlamento, e a experimentação em animais continuou a ser permitida nos mesmos termos anteriores. O testemunho de William Osler 7 dimensionou a participação de Starling: "Starling’s evidence is A-1. He’s a crackerjack". Nos três anos subseqüentes, Starling envolveu-se, intensamente, em política universitária, além de dedicar-se a viagens ao exterior, especialmente aos Estados Unidos, ministrando conferências sobre a produção de linfa e sobre mecanismos de controle químico.

Logo após, as atribulações da política internacional do início do século motivaram seu afastamento da universidade. Seu vigor e obstinação foram canalizados para a causa mundial. A admiração que dedicava à cultura germânica rapidamente reverteu, e engajou-se no exército, como capitão, durante a Primeira Guerra Mundial. Serviu durante algum tempo no Herbert Hospital, porém, logo em seguida, a Gra-Bretanha iniciou seus esforços em pesquisas de guerra e Starling foi indicado como Diretor de Pesquisa em Millbank, dedicando-se aos estudos experimentais dos gases ofensivos. Seu convívio com os militares foi atribulado 6,9 . Esforçou-se, tenazmente, para a adoção pelos aliados do gás mostarda, que, posteriormente, foi utilizado pelos alemães. Sua impaciência e pouca ortodoxia criaram embaraços para a sua ação. Em 1916, a estratégia dos aliados conferia um destaque especial à Grécia, e lá consolidaram sua posição com a transferência de grande contingente francês e inglês 8 . Starling foi promovido a tenente-coronel e transferido para Salonika. Sentindo o pouco proveito de sua atividade nesta posição, e considerando sua maior contribuição como civil, solicitou dispensa em 1917. No mesmo ano, deu continuidade à sua participação pública, tornando-se Chairman of the Special Commitee on Surgical Shock and Allied Conditions of the Medical Research Commitee (antecessor do Medical Research Council). Em 1918, tornou-se Chairman of the Royal Society’s Food Commitee e conselheiro do Ministry of Food. Durante este período, foi vigorosa sua participação no esforço de denunciar a fragilidade do ensino secundário inglês e de consolidar as ciências básicas, especialmente a fisiologia.

Em 1923 Starling aposentou-se, e foi indicado para a posição de Fourleton Research Professor of the Royal Society. Continuou a trabalhar na University College com seu grupo de discípulos em pesquisa, desobrigado de encargos administrativos e didáticos.

A situação de saúde de Starling, precocemente, foi fator de preocupação9. Em 1910, durante prática de alpinismo nas Dolomitas, manifestaram-se, pela primeira vez, sintomas que foram considerados como dependentes de insuficiência cardíaca. Em 1920,em viagem com finalidade acadêmica para a Índia, foi acometido de malária, e, logo após, foi submetido a hemicolectomia; supostamente, por obstrução neoplásica do colon. Após a cirurgia seu estado de saúde deteriorou lentamente e motivou, em 1927, sua decisão de fazer um cruzeiro pelas Índias Ocidentais, na expectativa de se recuperar. A bordo do Ariguani aportou em Barbados, Trinidad, Port Limon e Cristobal. Próximo da Jamaica Starling faleceu subitamente. Foi sepultado em Kingston e no atestado de óbito ficou registrada Insuficiência Cardíaca aguda como causa de morte.

 

Atividade científica

O interesse de Starling em Fisiologia era geral, mas o que o atraia, particularmente, era a busca dos fundamentos físicos e químicos dos processos de regulação. Sua participação no primeiro de seus trabalhos9 foi como colaborador de Frederick Gowland Hopkins, professor de bioquímica de Cambridge, que mais tarde receberia um Prêmio Nobel. Foi o relato de um caso de intoxicação por fósforo. A publicação de sua primeira produção efetiva data de 1891, em co-autoria com Bayliss, na qual analisou a eletrofisiologia cardíaca 4 .

No período inicial de sua atividade científica, Starling deu maior ênfase ao equilíbrio dos líquidos e às secreções digestivas.

Heidenhain havia proposto um mecanismo de ativação linfática, que excluía a filtração na formação da linfa. No retorno de seu estágio com Heidenhain Starling retomou a análise da cinética tissular dos líquidos. Durante cinco anos dedicou-se a este assunto e, progressivamente, foi verificando 5, 17, 18, 25-31 que: 1) a formação da linfa depende da permeabilidade da parede dos vasos e da pressão intracapilar; 2) a pressão osmótica das soluções colóides, às quais os capilares são relativamente impermeáveis, é um fator determinante do deslocamento dos líquidos; 3) a pressão osmótica das proteínas plasmáticas e a pressão hidrostática reinante nos capilares constituem as forças que regulam o sentido do deslocamento dos líquidos. Este conjunto de princípios permite entender o denominado "princípio de Starling"**, que rege o equilíbrio dos líquidos.

Não passou desapercebido à Starling que, nos rins, o equilíbrio dos líquidos resultava em função de filtração específica. Ele foi o primeiro a conferir aos rins a função filtradora. Mais tarde, caracterizou que a maioria dos solutos plasmáticos era, simplesmente, filtrada nos glomérulos; boa parte dos componentes do filtrado era reabsorvida (água, cloro, bicarbonato, glicose), enquanto outras substâncias (uréia e sulfatos) eram secretadas. Deveria existir algum fator (pituitrina) capaz de controlar a eliminação de água.

Em fase intermediária de sua atividade de investigação Starling dedicou-se ao estudo das funções motora e de secreção do aparelho digestivo. Sua participação no estudo da função hormonal foi notável. Na época, prevalecia o conceito de Pavlov de que a atividade de secreção era subordinada ao controle nervoso. Contrariando o saber estabelecido, Starling e Bayliss descreveram a existência, e as vias de ativação humoral, da secretina pancreática.Formularam o conceito de "chemical messengers" e, pela primeira vez, utilizaram a expressão hormônio. Depois de intenso descrédito a respeito da nova proposta, Pavlov admitiu a sua validade, aparentemente 9 , nos seguintes termos: "Of course they are right. It is clear that we did not take out an exclusive patent for the discovery of truth".

Em outra seqüência de trabalhos, conduzidos juntamente com Knowlton, Starling antecipou, em anos, a existência da insulina 6 : "So far our results go, they seem to indicate that the pancreas normally produces a hormone which circulates in the blood, and the presence of which is necessary in order that the tissue cells may be able to assimilate and utilize the sugar of the blood".

Em 1912, Starling iniciou seu segundo período de grande produtividade em pesquisa. Foi durante esta última fase que ele se dedicou, prioritariamente, à função cardíaca e articulou sua concepção sobre o desempenho cardíaco em condições normais e patológicas. O conjunto de suas publicações representa, ainda hoje, a maior contribuição pessoal para o entendimento da função mecânica do coração.

 

Contribuição para a fisiologia cardíaca - a lei fundamental do coração

Os trabalhos sobre o equilíbrio dos líquidos deram renome internacional a Starling, possibilitando-lhe desfrutar de convívio com a comunidade científica de vanguarda. Durante conferências (Arris and Gales Lectures) proferidas neste intercâmbio, abordou aspectos da função cardíaca não relacionados, propriamente, com o equilíbrio dos líquidos. Delas resultaram, em 1897, a publicação de três textos 32 . É surpreendente como o primeiro deles (On the Compensatory Mechanisms of the Heart) antecipa as "leis do coração" de 12 anos, em relação à época que Starling começou a padronizar a preparação coração-pulmão: ‘... we can increase the resistance to be overcome by the heart to three or four times the normal amount, without altering in any way the quantity of blood expelled in each beat, ... within very wide limits the output of the heart is independent of the resistance to output... increase diastolic distension exercises a strong augmenting effect on the ventricular contraction". Mais tarde ele verificaria que estas características eram preservadas no coração denervado e, portanto, eram expressões de uma propriedade intrínseca.

Considerando as informações existentes sobre as influências do estiramento diastólico sobre a capacidade de contração sistólica ventricular, Guz13 propôs que as "relações de Frank-Starling" passassem a ser chamadas "relações de Hales-Haller-Müller-Ludwig-Roy- Howell- Donaldson-Frank-Starling". Hales, em 1740, estudando a influência da musculatura abdominal sobre a pressão arterial de éguas, teria sido o primeiro a fazer referência à associação entre retorno venoso e força de contração. Posteriormente, de alguma forma, os autores subseqüentes fizeram menção às relações entre enchimento diastólico-desempenho sistólico. O trabalho de Otto Frank 10 , desenvolvido em coração de sapo e publicado em 1895, inquestionavelmente, influenciou a decisão de Starling de voltar a analisar a questão uma década depois.

Em 1912, em associação com Franklin P. Knowlton, Starling divulgou seu primeiro trabalho resultante do estudo da preparação coraçaopulmão16. Este texto sobre as leis do coração confirmou as proposições antecipadas por Starling: a) o débito cardíaco, em larga margem, independe da resistência ao esvaziamento ventricular e b) dentro de limites, o débito cardíaco é proporcional ao retorno venoso. Foi analisado que, se o retorno venoso fosse aumentado em excesso, ocorria edema pulmonar, e a preparação deteriorava rapidamente. Trabalho publicado em 1914, em colaboração com Sydney W. Patterson23, divulgava pela primeira vez as conhecidas curvas de Starling (fig 1), mostrando que a pressão de enchimento e o débito cardíaco se elevam, em conjunção, até um limite, além do qual uma elevação adicional do retorno venoso reduz a ejeção ventricular. 

Este foi o início da controvertida proposição de Insuficiência Cardíaca creditada a Starling, embora ele nunca a tenha formalizado como tal.

Entre os textos que tratam das leis do coração, o de maior repercussão (The Regulation of the Heart Beat) 23 resultou de trabalho colaborativo anglo-germanico (Piper era alemão) e incluiu, pela primeira vez, uma hipótese que foi possível de ser confirmada mais tarde, com o advento da microscopia eletrônica: "... the mechanical energy set free on passage from the resting to the contracted state depends on the area of chemically active surface, i.e., on the lenght of the muscle fibers". Em meados da década de 1960, valendo-se da microscopia eletrônica, Gordon, Huxley e Julian11 elaboraram a "teoria dos miofilamentos deslizantes", que permitiu compor a conceituarão atual da contração miocárdica.

As avaliações histométricas possibilitaram analisar o comprimento do sarcômero, dos filamentos grossos e dos filamentos finos. Com base nas medidas ultramicroscópicas, Gordon, Huxley e Julian puderam considerar que o desempenho sistólico do miocárdio depende do estiramento diastólico porque o comprimento em repouso regula a disposição espacial dos filamentos de actina e de miosina, e determina o número possível de pontos de interação química entre estas proteínas (fig 2). Fica caracterizado que, em termos do saber do momento, estes conceitos eqüivalem à interpretação proposta pelo grupo de Starling 50 anos antes.

A concepção morfofuncional de Gordon, Huxley e Julian a respeito da contração miocárdica abrange as fases ascendente e descendente da "curva de Frank-Starling": estiramentos do sarcômero até 2,1, µ são acompanhados de elevação da capacidade em gerar força; estando os sarcômeros estirados entre 2,1 2,3, µ não ocorre modificação na capacidade em gerar força; e estiramentos superiores a 2,3, µ resultam em deterioração da capacidade contrátil.

A fase descendente das "relações de FrankStarling" já havia sido objeto de controvérsias antes mesmo da publicação de Gordon, Huxley e Julian. Kats 15 , embasado em deduções exclusivamente teóricas, havia se manifestado  em oposição explícita à possibilidade de a fase descendente ser compatível com a vida. Demonstrações posteriores 19,21, 35 indicaram que, no coração "in situ", não há a fase descendente da capacidade cardíaca em gerar força. Esta circunstancia é conseqüência do fato de, no miocárdio contrátil, "in vitro" 12 e "in vivo" 33 , os sarcômeros não serem estirados além de 2,3 µ. Dilatações ventriculares subseqüentes ao estiramento ótimo dos sarcômeros se devem a estiramentos do tecido conjuntivo e não mais dos sarcômeros.

Não obstante esta verificação, que desvincula a fase descendente de estiramentos dos sarcômeros, foi reafirmado 19 que dilatações ventriculares excessivas resultam em comprometimento da capacidade de ejeção ventricular.

A fase descendente do desempenho cardíaco, provavelmente, se enquadra nas circunstâncias recentemente designadas como desajustes da pós-carga 20, 24 . As expansões ventriculares que se estabelecem após estiramentos ótimos dos sarcômeros são desprovidas de efeito aprimorador da contração; não obstante, em função da lei de Laplace (força = pressão x raio/espessura da parede), as dilatações da câmara implicam em inevitável acréscimo na força parietal a ser desenvolvida durante a contração e, portanto, em redução do encurtamento.

No final da década de 70, a concepção morfofuncional proposta por Gordon, Huxley e Julian passou a ser contestada 14 como o mecanismo subcelular único das relações de Frank-Starling.

A "teoria dos miofilamentos deslizantes" tem forte implicação com o conceito de individualidade no mecanismo de Frank-Starling e da contratilidade miocárdica. O conceito de individualidade destas propriedades já vigorava anteriormente; a teoria dos miofilamentos deslizantes apenas ofereceu elementos para sua consolidação. Segundo esta concepção, existem duas propriedades miocárdicas autônomas, reguladas por fundamentos independentes: 1) o mecanismo de Frank-Starling, que teria como fundamento fatores físicos (principalmente, a disposição espacial dos filamentos grossos e finos) e 2) a contratilidade miocárdica, que seria regulada por fatores químicos (teor intracelular de cálcio e capacidade APTásica da miosina). Como integrante da proposta há, implícito, que o estiramento miocárdico não interefe nos fenômenos químicos subcelulares. Demonstrações posteriores, em amostras isoladas de miocárdio 22 e em preparações de ventrículo intacto 34 (fig 3), evidenciaram que as circunstancias são mais complexas. Os estiramentos miocárdicos interferem no teor de cálcio que se liga às proteínas contráteis 1 , isto é, o mecanismo de FrankStarling interfere na contratilidade miocárdica e, portanto, inclui componentes semelhantes às manobras inotrópicas tradicionalmente imputadas às catecolaminas ou à ministração de cálcio e de digitálicos. Estas últimas demonstrações abrem a perspectiva de ser necessário rever, em outras bases, os fundamentos de análise da função ventricular, tornando atual a matéria que foi suscitada por Otto Frank há um século atrás e que vinculou, com tanta ênfase, o nome de Ernest Henry Starling à Cardiologia.

 

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Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. 
Pesquisador IA do CNPq.
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Cep: 18610 - Botucatu, SP.
Recebido para publicação 10/1/92
Aceito em 3/2/92