Caminhos da Cardiologia

William Osler, Médico

 

Protásio Lemos da Luz 
São Paulo, SP

Luiz V. Décourt
Coordenador

 

O artigo que apresentamos nesta revista exibe um título justo e expressivo em sua própria concisão. Ele caracteriza essencialmente um médico, isto é, um indivíduo que exerceu a arte de curar revestido de todas as qualidades que a profissão exige e que, então, deveriam estar presentes em todos os seus seguidores. Um mestre no conhecimento, na capacidade de assistência, na hierarquia da docência e na categoria da pesquisa clínica. E que reconheceu as limitações da própria competência se não estruturada sobre a visão integral do enfermo como ser humano. Um defensor da cultura humanística e de uma educação médica objetiva que se perpetuasse no tempo ("a life course"), como aspectos básicos do ensino.

O professor Lemos da Luz focalizou, com profundidade, precisão e carinho, as características desse sábio clínico cuja projeção, como exemplo, tem crescido através dos anos. Características que, ao menos informados, poderiam se apresentar como irreais e fantasistas, quase configurando a idealização de uma figura mística. Mas que nos atraem quando a encontramos na aproximação de suas atividades e de sua forma de vida. E reconhecemos, então, que sua vivência desafia quaisquer restrições.

Por isso, como reconheceu Wheeler, em sua Shattuck Lecture, the example of Osler is not old fashioned. It is timeless.

 

Em maio de 1989 a "Johns Hopkins Medical School", de Baltimore, comemorou cem anos. Várias solenidades foram realizadas em homenagem a esta magnífica instituição que tanta e tão benéfica influência tem tido sobre a medicina americana e mundial. Hopkins foi a primeira universidade a adotar o currículo médico de quatro anos que até perdura nos EUA. Foi também a primeira escola médica a aceitar mulheres 1 . Foi igualmente a casa de Florence Nightingale, a inspiradora das enfermeiras de todo o mundo. Inúmeras inovações da maior relevância foram introduzidas em Hopkins ao longo dos anos e ela certamente continua sendo um dos centros médicos mais avançados do mundo. Pois bem, o New England Journal of Medicine dedicou mais espaço a William Osler do que à instituição que ele presidiu, na época do centenário daquela. De fato a vida de Osler e a de Hopkins se confundem. Fye 2 e Wheeler 3 em magníficos artigos sobre o aniversário de Hopkins ocuparam-se quase exclusivamente de Osler, reconhecendo que foi e ainda é o paradigma do médico americano, o exemplo a ser seguido, o herói que inspira os jovens, dignifica a profissão e orgulha os seus contemporâneos. Foi segundo esses relatos o médico mais importante do fim do século passado nos EUA, e seguramente no mundo todo. Por que foi Osler tão importante? Por que sua influência se estende de modo tão vivo sobre a medicina americana atual, mesmo tendo atuado há praticamente cem anos?

Embora Osler fosse um clínico notável, ímpar mesmo no seu tempo, não se tem notícia de nenhuma descoberta sua que de fato o tenha singularmente distingüido entre as pessoas que fizeram contribuições fundamentais para a cura das doenças, para a criação de novas técnicas diagnósticas ou elucidação de mecanismos fisiopatológicos. Não criou nenhuma teoria que tivesse revolucionado o pensamento e o modo de agir da humanidade, como Einstein com sua relatividade. Osler não ganhou nenhum Prêmio Nobel. No entanto sua influência tem sido a mais marcante entre os médicos americanos nos últimos cem anos. Não são tantos os feitos científicos de Osler que são lembrados pelos seus contemporâneos, biógrafos e admiradores. É o homem Osler, o médico na acepção mais pura da palavra que é reverenciado. Isto em si torna sua vida e sua obra especialmente fascinantes.

 

A Vida de Osler 

William Osler nasceu em 1849, em Bond Head, Ontário, no Canadá. Seu pai era um oficial da marinha real inglesa que mais tarde tornou-se ministro da Igreja da Inglaterra e emigrou para o Canadá logo que casou. Foi exercer seu sacerdócio na rude fronteira do Canadá, onde a família enfrentou dificuldades econômicas, eventualmente até fome e frio. Assim, Osler foi acostumado desde criança com rígidos princípios religiosos, morais e de trabalho. Era o oitavo dentre nove irmãos. Apesar destas condições de vida árduas, a família de Osler parece ter enfrentado tudo com ânimo forte e sem lamentações. Osler mesmo nunca deu demonstrações de que sua infância tenha sido menos feliz. Nos seus primeiros anos escolares sofreu grande influência do padre William Johnson que era naturalista, um artista e um professor de humanidades que introduziu a Osler os clássicos da literatura inglesa. Foi Johnson quem induziu Osler a ler Religio Medici de Sir Thomas Browne, um famoso médico do século XVII. Osler considerava este livro como sua bíblia, o mais valioso de toda sua biblioteca; era seu livro de cabeceira. Quando ele morreu esse livro foi colocado em seu caixão. A influência do padre Johnson foi tão grande que de fato ele queria inicialmente ser ministro. Com ele Osler também fez suas primeiras investigações biológicas, coletando especimens biológicas em excursões escolares pelos campos da agreste região onde moravam. Outras importantes influências na vida de Osler foram as de James Bovell e Palmer Howard. Bovell era médico e naturalista. Encorajou Osler a usar seu microscópio e sua excelente biblioteca; note-se que o microscópio, nos anos de 1860, era um grande luxo a que poucos médicos podiam-se permitir. Howard era um médico astuto e professor apaixonado de clínica da McGill Medical School, de quem Osler mais tarde falou com grande admiração e entusiasmo. Quando em 1892 Osler publicou seu clássico livro "The Principles and Practice of Medicine" dedicou-o a estes três mentores que moldaram seu caráter de médico e pesquisador e desenvolveram-lhe o gosto pela leitura de humanidades, pela ciência e pela prática da medicina.

Em 1874, com apenas 25 anos, Osler tornou-se professor de medicine na McGill Medical School. Dez anos mais tarde assumia a cadeira de medicina clínica na Universidade da Pensilvânia. Em 1889, com 40 anos, tornou-se professor de medicina na recém-criada Johns Hopkins Medical School, em Baltimore, a qual se tornaria o protótipo das escolas médicas americanas contemporâneas. Em Baltimore casou-se com Grace Osler e teve um filho. Nos seus dezesseis anos em Baltimore fez suas grandes contribuições a medicina, ao ensino e ao desenvolvimento da Universidade Hopkins. Sua última posição acadêmica foi a de Regius Professor of Medicine, em Oxford, Inglaterra, para onde foi aos 55 anos e onde viveu os últimos catorze anos de sua vida; morreu em 29 de dezembro de 1919. Enquanto exercia cada um destes cargos Osler recebeu várias propostas de outras universidades que queriam seu concurso. Na sua passagem por Hopkins foi contemporâneo de Halsted, professor de cirurgia, Kelly, professor de ginecologia e Welch, professor de patologia e primeiro reitor. Osler, Halsted, Kelly e Welch foram pioneiros no desenvolvimento de programas de graduação e residência e exerceram enorme impacto na prática médica de suas especialidades. Osler foi o mais famoso e o mais influente de todos.

 

A Razão de sua Influência 

O grande médico 

Osler foi o mestre clínico de sua época. Era incontestavelmente o mais sábio de sua época, o mais arguto clínico; sua habilidade em diagnosticar era legendária. Sua biografia escrita por Reid 4 entitulou-se "O grande médico". Curioso como numa época em que não havia recursos terapêuticos eficazes como hoje, Osler se notabilizou como milagreiro. Parece que seu segredo era compreender muito bem as pessoas, além das doenças. Ele entendia o sofrimento humano e o respeitava. Seus esforços para compreender o mecanismo e as conseqüências das doenças ia além do físico e do químico para penetrar no espírito das pessoas e partilhar suas aflições. Tinha intrínseco, genuíno otimismo e grande compaixão. Seu elo pessoal com os pacientes adquiria formas de seita, de religião. Osler como que abençoava e os doentes melhoravam. Ele mesmo usava poucas drogas e foi descrito como um miilista no que respeita à terapêutica. Mas era um crente no gênero humano. Tinha sempre bom humor com os pacientes e lhes transmitia grande segurança. Foi um devoto da medicina de beira-de-leito. Suas visitas médicas nas enfermarias da Hopkins chegaram a assumir proporções incômodas tal o número de pessoas que vinham para ouví-lo. Teve clínica gigantesca para a época, a qual lhe rendeu considerável soma em dinheiro. Era o médico dos médicos. Paraxodalmente, o motivo principal que o levou a deixar Baltimore e ir para Oxford em 1905 foi justamente a sobrecarga de trabalhos clínicos que lhe roubavam excessivo tempo; tempo esse que desejava dedicar aos estudos e a pesquisa 1 . Nancy Astor, membro da realeza inglesa, que havia sido sua paciente no Hospital Hopkins, e que trabalhou como voluntária num hospital militar inglês durante a primeira guerra mundial, onde Osler trabalhou como consultor, descreveu a atuação dele: "Seu trabalho no hospital foi como toda sua vida, totalmente desprendida... e cada "Tommy" (soldado britânico comum) ganhava a atenção que o Príncipe de Gales receberia dele. Os pacientes esperavam por ele e aceitavam sua palavra como final, e não era nunca de desencorajamento... Essa era a parte maravilhosa dele. Ele realmente trazia cura e saúde. Vida, não morte". 5 . A palavra humanismo tem sido freqüentemente usada para descrever a atuação de Osler. Isso parece apropriado, mas deve-se salientar que humanismo não necessita apenas compaixão e vontade de ajudar. Humanismo é também "uma arte de palavras e de atitudes" como disse Wheeler; como mestre das palavras, Osler era capaz de se comunicar de maneira clara e profunda com seus pacientes. Assim, despertava fé e transmitia confiança.

Thomas Cullen 3 que o conheceu bem na Hopkins, sumarizou sua atuação assim: "Com seu modo de vida, sua personalidade, seus ideais, sua alegria, sua gentileza ele consolidou a profissão médica em Maryland, e no país inteiro, de modo que o amor fraternal tornou-se sua nota dominante. Isso, na minha opinião, foi a melhor e mais duradoura contribuição de William Osler a medicina americana".

Assim, pode-se concluir que Osler foi o melhor médico do seu tempo por dois motivos: ele sabia mais medicina do que todos e amava mais seus pacientes.

 

O educador

Osler considerava que sua mais importante função era ensinar estudantes na enfermaria. Segundo Wheelei 3 , chegou a sugerir que no seu epitáfio se inscrevesse simplesmente "Eu ensinei estudantes de medicina nas enfermarias".

Osler tinha idéias claras a respeito do ensino médico nas faculdades de medicina. Acreditava que a educação dos estudantes deveria incluir grande porção de humanidades, ao lado dos conhecimentos técnicos. Ele mesmo era um leitor assíduo de clássicos da literatura como Platão e Shakespeare. Acreditava também que a função do ensino era desenvolver o gosto pelo conhecimento, e não encher a cabeça dos estudantes com meros fatos. Isto contrasta com o que vemos hoje quando estudantes são treinados principalmente para serem técnicos e pouco para cuidar de pessoas.

Escreveu extensamente sobre várias facetas da medicina; deu conferências e aulas em muitos lugares, deu conselhos a estudantes ensinando-lhes não apenas conhecimentos técnicos mas maneiras de agir, princípios de moral e ética médicas, e sobretudo humanismo. Uma de suas peças mais conhecidas e uma conferência de 1913, quando veio da Inglaterra para pronunciá-la aos estudantes da Yale University 6 . E um verdadeiro sermão leigo, preparado durante a viagem de navio para os EUA, e que foi impresso com o título "A way of life", no qual Osler essencialmente prega disciplina constante e atenção aos deveres de cada dia, sem grandes preocupações com o amanhã nem entraves pelo que aconteceu no passado; e sobretudo sem devaneios que podem nunca se realizar. Osler era um homem prático, um homem de ação. Esta pregação e o desenvolvimento de um conceito que aprendera de Thomas Carlyle, ainda nos seus anos de formação na McGill Medical School, segundo o qual "Nossa obrigação principal não é ver o que está vagamente à distância, mas sim fazer aquilo que está claramente a mão" 3 . Osler fez disso seu lema de vida. Ele enfatizou repetidamente a importância de se adquirir bons hábitos de estudo e comportamento no dia-a-dia, para se obter os fins desejados, e como essa disciplina é essencial para o médico. Ele acreditava em Plutarco para quem "Caracter é o hábito de longa duração".

Seu livro Aequanimitas 7 trata de vários tópicos, representando uma coletânea de conferências que pronunciou em várias ocasiões. É uma obra que os atuais dirigentes da Hopkins guardam e divulgam com grande carinho e que me foi presenteada por Myron Weisfeldt seu atual chefe de cardiologia.

Osler também se ocupou da educação profissional dos médicos que praticam medicina fora dos ambientes universitários. Chamou a atenção para a necessidade de atualização constante e para os problemas que a sobrecarga de trabalho pode trazer para a atualização profissional. Lendo sua preleção aos colegas da New Haven Medical Association 7 , em 1903, por ocasião da celebração do centenário desta, fica-se impressionado com a atualidade dos conceitos de Osler sobre a educação continuada. Ele salienta a necessidade de o médico prático combater a preguiça intelectual que tende a se instalar em cada um na medida em que a sua clínica aumenta e o tempo de estudo diminui. Ele prega que as sociedades médicas devem assumir um papel primordial no aprimoramento da educação do médico prático, tanto quanto as escolas médicas na formação dos estudantes. Cita Platão para indicar que "Educação é assunto para a vida inteira" e Hipócrates para combater a excessiva confiança na experiência pessoal, notando que "A experiência é falha e o julgamento difícil". Ele enfatiza sobretudo que medicina é uma arte extremamente difícil, que cada caso tem suas próprias peculiaridades, e que a variabilidade é a lei da vida. Portanto, o médico precisa se aperfeiçoar sempre para cuidar adequadamente do bem maior, a vida humana. Esta é certamente um visão que cem anos passados não puderam desmerecer !

 

O cientista

Foi talvez o primeiro médico-pesquisador na concepção que hoje temos do indivíduo que procura conhecer a fundo as causas e mecanismos das doenças que trata em seus próprios pacientes. Costa que quando trabalhava na McGill Medical School realizou pessoalmente mais de 1000 autopsias, das quais vários especimens podem ser apreciados ainda hoje no museu da universidade. Procurou o conhecimento profundo das doenças da época. Era um arguto observador. Descreveu os nódulos de Osler-sinal quase patognomônico de endocardite infecciosa 8 , bem como a síndrome de Osler-Weber-Rendu, constituída por teleangiectasias da metade superior do corpo e hemorragias renais e gastro-intestinais 9 . Suas observações pioneiras em endocardite infecciosa foram fundamentais para o conhecimento da doença, que é conhecida também como enfermidade de Osler10 . Escreveu um tratado-The Principles and Practice of Medicine que se tornou indispensável para médicos e acadêmicos de sua época, tornando-o reconhecido no mundo inteiro. Numa época em que os grandes avanços tecnológicos de diagnóstico, como tomografia computadorizada, radioisótopos e ressonância magnética ainda não existiam, Osler foi um mestre da sistematização da anamnese e do exame físico.

O episódio da ida de Osler para a Inglaterra 2 ilustra bem o tipo de pessoa que era ele, e o valor que dava a sua atividade acadêmica. Em 1904 ele recebeu a oferta para a posição de "Regius Professor of Medicine" em Oxford e escreveu em seu diário "Isto parece a chance de eu escapar de uma crescente pressão de trabalho... Apesar de cuidadosa regulagem do meu tempo e saúde eu freqüentemente me sinto exaurido no final de semana e a questão é por quanto tempo eu poderia me agüentar sob esta tensão". Harvey Cushing 5 que era seu vizinho de porta, escreveu "Na medida em que o tempo foi passando em Baltimore ele se tornou mais e mais sobrecarregado com trabalho estritamente profissional e na primavera de 1904 quase chegou a exaustão. Reconhecido de Hudson Bay ao Golfo, da Nova Escócia à Califórnia, como o médico dos médicos, mesmo que pudesse reduzir algumas consultas regulares, isso não podia ser feito quando algum membro imediato da família de um médico estava envolvido". Assim, em grande parte premido pela demanda de trabalho que a fama lhe trouxera, Osler aceitou a cadeira em Oxford em 1904; era virtualmente uma posição acadêmica, altamente dignificada, sem trabalho hospitalar mas com quanta ocupação de ensino ele quisesse. Quantos seriam capazes de deixar uma posição de tanto prestígio e dinheiro em Baltimore para ser acadêmico em Oxford?

Numa época como a nossa em que se procura integrar conhecimentos básicos a conceitos clínicos, para tornar as conquistas da ciência básica em instrumentos de aplicação clínica imediata, a atuação de Osler simboliza perfeitamente essa concepção de medicina unificada. Ilustra como o homem de ciência básica também pode ser o clínico que trata e o professor que ensina. Afasta a idéia do médico prático que simplesmente aplica o que os outros descobrem, mas sem de fato saber o porquê. Brown e Goldstein 11 ilustram a versão moderna e mais expressiva do médico-pesquisador que Osler foi. Sendo médicos e professores em essência, nem por isso deixaram de dar um contribuição fundamental em ciência básica ao descobrirem os receptores de colesterol, pelo que ganharam o Prêmio Nobel de Medicina. Pelo seu interesse nos mecanismos e causas últimas das doenças, seria de se prever que, se Osler vivesse hoje, estaria certamente interessado em fenômenos celulares e subcelulares, pois seguramente identificaria nessas matérias o que buscava em seus estudos de patologia de então, ou seja, a causa última das enfermidades. Na ocasião ele recomendava o contato constante com os pacientes e os estudos de necrópsia. Dizia que aprendia com os pacientes e que medicina se aprendia à beira-de-leito, e não em conferências. Hoje certamente acrescentaria genética, engenharia genética e biologia molecular a seus tópicos de maior interesse na busca de um entendimento mais profundo dos mecanismos e causas das doenças.

 

O líder da comunidade médica

Participou diretamente da organização do Hospital e da Universidade Johns Hopkins, ajudando a transformá-la num centro de dedicação à ciência, aos doentes e ao bem estar da humanidade. Osler sempre achou que os médicos deveriam participar dos assuntos de saúde pública de seu tempo. Sua ativa participação em sociedades médicas e organizações hospitalares levou-o a envolver-se vigorosamente em campanhas para erradicar a tuberculose; foi contra uma proposta de lei que colocaria o licenciamento médico sob o controle de pessoas leigas, e parece os dias de hoje opôs-se com energia a uma legislação antivivisecção 3 .

Para chegar a tantas realizações. Osler tinha algumas qualidades especiais, e principalmente, enfeixava em sua personalidade aquela somatória de boa vontade, força e determinação que os homens chamam liderança. Acreditava numa palavra-chave que pensava era o "abre-te-sésamo" para tudo. Esta palavra era simplesmente trabalho. De fato, Osler era um trabalhador incansável e metódico.

Era de extrema dedicação à medicina estudou a vida toda, pensou em medicina o tempo todo. Tinha um entusiasmo contagiante pela profissão que considerava realmente sagrada, um sacerdócio que não poderia ser maculado pela inveja, pela injúria, pela preguiça ou pela ganância.

Tinha férrea disciplina-lia alguma coisa diariamente, mesmo depois de dias de longo esforço. Acreditava piamente no seu código do dia-a-dia bem feito que aprendera de Thomaz Carlyle. Ele praticava o que dizia. Era um homem coerente, e por isso seus ensinamentos tiveram tanta força e produziram tanto impacto. Osler escrevia praticamente tudo o que falava-assim, suas palavras tinham sempre duas formas de impacto-quando as pronunciava e quando eram lidas.

Por fim, da leitura de sua biografia e de suas próprias declarações em cartas e no seu diário, fica claro que Osler obtinha grande satisfação com o seu trabalho, fosse acadêmico ou com pacientes. Inúmeras referências elogiosas foram feitas a seus colegas da universidade e aos estudantes, a quem dedicava particular afeição. Talvez essa característica tenha-lhe ajudado a granjear fama e admiração; era certamente um homem que irradiava uma força positiva por onde passava, gerando entusiasmo e motivando.

Osler é um exemplo até hoje porque aliou como ninguém a ciência da investigação na medicina com sua aplicação a beira-de-leito, e porque ao exercê-la empregou calor humano e compaixão. De fato foi um médico de pessoas, antes de ser um técnico de sistemas do corpo humano.

 

A medicina de hoje e o espírito de Osler

O paradoxo progresso científico/desprestígio social que vive a profissão médica no Brasil de hoje angustiaria Osler. Por um lado nunca se obteve tanto avanço diagnóstico e terapêutico, nunca se compreendeu tanto a natureza das doenças e os mecanismos que causam a morte. Nunca se dispôs de tantos recursos para prolongar a vida. De fato o sofrimento humano de causas orgânicas têm sido grandemente diminuído.

Seria, pois, lógico esperar-se que isso se refletisse num respeito e admiração maiores da sociedade pela profissão médica. Afinal os objetivos principais da atuação médica, que são diminuir o sofrimento e prolongar a vida, vêm sendo cumpridos como nunca na história da humanidade.

Porém não é o caso. Também nunca houve tantas críticas, tantos processos contra médicos, tantas denúncias de incompetência, desonestidade e barganhas que visam mais vantagens econômicas do que o bem estar dos doentes. Certamente um conjunto de fatores é responsável por essa situação que gera o descrédito da profissão médica junto ao público. O problema não é só brasileiro. Spencer12 em notável alocução dirigida a seus colegas do Colégio Americano de Cirurgiões, em 1990, salientou que nos Estados Unidos pesquisas de opinião revelaram que a estima do público pelos médicos vêm diminuindo sensivelmente; as causas não são de ordem científica ou tecnológica mas se referem ao comportamento dos médicos no exercício da profissão. Na óptica destes cidadãos americanos, e para resumir, o lado humanitário da profissão vem sendo esquecido.

A medicina é uma profissão exercida individualmente; pacientes são vistos e tratados de um por um. Portanto, não se pode desprezar o impacto da atitude pessoal do médico no trato com os enfermos, independente das técnicas que empregue. Os médicos e suas instituições profissionais não podem eximir-se de suas próprias responsabilidades. E como muito bem analisou Spencer 12 ciência só não resolve. Esta tem sido mais eficiente do que nunca para diagnosticar e tratar doenças físicas, mas se mostra ineficaz para oferecer o calor humano que todo doente precisa. Spencer 12 , que ardorosamente defendeu o compromisso com o paciente como essencial para o exercício da profissão, cita Osler várias vezes em seu artigo para ilustrar como o cuidado gentil e sinceramente dirigido ao homem doente é a parte mais nobre da profissão médica. De fato, é hora de invocar o espírito de Osler, seguir-lhe o exemplo-exercer a medicina com amor fraternal, para o doente, visando mitigar o sofrimento em primeiro lugar. Tal conduta, independente de tudo o mais, ajudará a resgatar o bom nome da nossa profissão. Isto é também a essência do mito de Osler-que cem anos depois continua a ser uma inspiração para seus pares.

 

Referências

1. Relman AS-The Johns Hopkins Centennial. N Engl J Med, 1989; 320: 1411.

2. Fye WB-William Osler’s departure from North America. The price of success. N Engl J Med, 1989; 320: 1425.

3. Wheeler B¾Shattuck lecture-Healing and heroism. N Engl J Med, 1990; 322: 1540.

4. Reid EG -The great physician: a short life of Sir William Osler. London. Oxford University Press. 1931; 55-ó6.

5. Cushing HW - The life of Sir William Osler. Vol. 2 Oxford; Clarendon Press, 1925; 570.

6. Osler W-A way of life. Harper & Row.

7. Osler W - Aequanimitas-with other addresses to medical students, nurses and practitioners of medicine. Philadelphia; P. Blakistone, 1904.

8. Johnson ML. In: Wyngaarden JB and Smith LH-Textbook o Medicine. WB Saunders Company, 1985. Pg. 2262-4.

9. Durack DT-Idem Pg. 1536.

10. Longcope WT-Sir William Osler and bacterial endocarditis. Bulletin of the Johns Hopkins, 1949; 85: 1.

11. Motulsky AG-The 1985 Nobel Prize in Physiology or Medicine. Science, 1986; 231: 126.

12. Spencer FC-The vital role in medicine of commitment to the patient. Bulletin of the American College of Surgeons, 1990; 75: 6.

 

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